Page 49 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Ouço  com  assombro,  duvidando  intimamente  desse  fervilhar  de  vício,  de  ninguém  ainda
               suspeitado. Mas acompanho-o.


               A Rua d. Manuel parece a rua de um bairro afastado. O Necrotério com um capinzal cercado de
               arame, por trás do qual os ciganos confabulam, tem um ar de subúrbio. Parece que se chegou,
               nas pedras irregulares do mau calçamento, olhando os pardieiros seculares, ao fim da cidade. Nas
               esquinas, onde larápios, de lenço no pescoço e andar gingante, estragam o tempo com rameiras
               de galho de arruda na carapinha, vêem-se pequenas ruas, nascidas dos socalcos do Castelo,
               estreitas e sem luz. A noite, na opala do crepúsculo, vai apagando em treva o velho casaredo.


               – É aqui.


               O 72 é uma casa em ruína, estridentemente caiada, pendendo para o lado. Tem  dois pavimentos.
               Subimos  os  degraus  gastos  do  primeiro,  uns  degraus  quase  oblíquos,  caminhamos  por  um
               corredor em que o soalho balança e range, vamos até uma espécie de  caverna fedorenta, donde
               um italiano fazedor de botas mastiga explicações entre duas crianças que parecem fetos saídos
               de frascos de álcool. Voltamos à primeira porta, junto á escada, entramos num quarto forrado
               imoralmente com um esfarripado tapete de padrão rubro. Aí,  um homenzinho, em mangas de
               camisa, indaga com a voz aflautada e sibilosa:


               – Os moços desejam?


               – É você o encarregado?


               – Para servir os moços.


               – Desejamos os chins.


               – Ah! isso, lá em cima, sala da frente. Os porcos estão se opiando.


               Vamos aos porcos. Subimos uma outra escada que se divide em dois lances, um para o nascente
               outro para o poente. A escada dá num corredor que termina ao fundo numa porta, com pedaços
               de pano branco, à guisa de cortina. A atmosfera é esmagadora. Antes de entrar é violenta a minha
               repulsa, mas não é possível recuar. Uma voz alegre indaga:


               – Quem está aí?


               O guia suspende a cortina e nós entramos numa sala quadrada, em que cerca de dez chins,
               reclinados  em  esteirinhas  diante  das  lâmpadas  acesas,  se  narcotizam  com  o  veneno  das
               dormideiras.


               A cena é de um lúgubre exotismo. Os chins estão inteiramente nus, as lâmpadas estrelam a
               escuridão de olhos sangrentos, das paredes pendem pedaços de ganga rubra com sentenças
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