Page 47 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
P. 47
Tomamos um ar de bonomia e falando como a querer enterrar as palavras naquele crânio já
trabucado.
– Chego de Londres, com um quilo de ópio, bom ópio.
– Ópio?... Nós compramos em farmácia... Rua S. Pedro...
– Vendo barato.
Os olhos do celeste arregalam-se amarelos, na amarelidão da face.
– Não compreende.
– Decida, homem...
– Dinheiro, não tem dinheiro.
Desconfiará ele de nós, não acreditará nas nossas palavras? O mesmo sorriso de medo lhe
escancara a boca e lá dentro há cochichos, vozes lívidas...O meu amigo bate-lhe no ombro.
– Deixa ver a casa.
Ele recua trêmulo, agarrando a rótula com as duas mãos, dispara para dentro um fluxo cuspinhado
de palavrinhas rápidas. Outras palavrinhas em tonalidades esquisitas respondem como pizzicatti
de instrumentos de madeira, e a cara reaparece com o sorriso emplastrado:
– Pode entrar, meu senhor.
o
Entramos de esguelha, e logo a rótula se fecha num quadro inédito. O n 19 do Beco dos Ferreiros
é a visão oriental das lôbregas bodegas de Xangai. Há uma vasta sala estreita e comprida,
inteiramente em treva. A atmosfera pesada, oleosa, quase sufoca. Dois renques de mesas, com
as cabeceiras coladas às paredes, estendem-se até o fundo cobertas de esteirinhas. Em cada
uma dessas mesas, do lado esquerdo, tremeluz a chama de uma candeia de azeite ou de álcool.
A custo, os nossos olhos acostumam-se à escuridão, acompanham a candelária de luzes até ao
fim, até uma alta parede encardida, e descobrem em cada mesa um cachimbo grande e um corpo
amarelo, nu da cintura para cima, corpo que se levanta assustado, contorcionando os braços
moles. Há chins magros, chins gordos, de cabelo branco, de caras despeladas, chins trigueiros,
com a pele cor de manga, chins cor de oca, chins com a amarelidão da cera nos círios.