Page 46 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
P. 46

Há de tudo – vícios, horrores, gente de variados matizes, niilistas rumaicos, professores russos na
               miséria, anarquistas espanhóis, ciganos debochados. Todas as raças trazem qualidades que aqui
               desabrocham numa seiva delirante. Porto de mar, meu caro! Os chineses são o resto da famosa
               imigração, vendem peixe na praia e vivem entre a Rua da Misericórdia e a Rua d. Manuel. As 5
               da tarde deixam o trabalho e metem-se em casa para  as tremendas  fumeries. Quer vê-los agora?


               Não resisti. O meu amigo, a pé, num passo calmo, ia sentenciando:


               – Tenho a indicação de quatro ou cinco casas. Nós entramos como fornecedores de ópio. Você
               veio de Londres, tem um quilo, cerca de 600 gramas de ópio de Bombaim. Eu levo as amostras.


               Caminhávamos  pela  Rua  da  Misericórdia  àquela  hora  cheia  de  um  movimento  febril,  nos
               corredores das hospedarias, à porta dos botequins, nas furnas das estalagens, à entrada dos
               velhos prédios em ruínas.


               O meu amigo dobrou uma esquina. Estávamos no Beco dos Ferreiros, uma ruela de cinco palmos
               de largura, com casas de dois andares, velhas e a cair. A população desse beco mora em magotes
               em cada quarto e pendura a roupa lavada em bambus nas janelas, de modo que a gente tem a
               perene impressão de chitas festivas a flamular no alto. Há portas de hospedarias sempre fechadas,
               linhas de fachadas tombando, e a miséria besunta de sujo e de gordura as antigas pinturas. Um
               cheiro nauseabundo paira nessa ruela desconhecida.


               O  meu  amigo  pára  no  n   19,  uma  rótula,  bate.  Há  uma  complicação  de  vozes  no  interior,  e,
                                       o
               passados instantes, ouve-se alguém gritar:


               – Que quer?


               – João, João está aí?


               João e Afonso são dois nomes habituais entre os chins ocidentalizados.


               João não mora mais...


               – Venha abrir, brada o meu guia com autoridade.


               Imediatamente a rótula descerra-se e aparece, como tapando a fenda, uma figura amarela, cor de
               gema de ovo batida, com um riso idiota na face, um riso de pavor que lhe deixa ver a dentuça suja
               e negra.


               – Que quer, senhor?
   41   42   43   44   45   46   47   48   49   50   51