Page 45 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Que plural é esse? Vendem-se, vendem-se... Quem vende sou eu e sem sócios, ouviu? Corte
o m, ande!
As letras custam dinheiro, custam aos pobres pintores... O rapaz ficou sem o m que fizera com
tanta perícia. Mas também, por que estragar? Em S. Cristóvão havia uma Pharmacia S. Cristóvão.
Desapareceu. Foi a primeira que fez isso na terra, desde que há farmácias. Foram para lá outros
negociantes. Como aproveitar algumas letras? Lembraram foco, e, como a Academia não chega
os seus cuidados ortográficos às tabuletas, arrumaram Phoco de S. Cristóvão. Estava uma
tabuleta nova só com três letras novas.
Os pintores de tabuletas resignam-se. Eles, os escritores desse grande livro colorido da cidade,
têm a paciência lendária dos iluministas medievos, eles fazem parte da grande massa para que
o Reclamo foi criado – são pobres. Talvez por isso, um mais ousado, de acordo com certo
açougueiro antigo da Praça da Aclamação, pintando uma vez o letreiro Açougue Pai dos Pobres,
pôs bem no meio uma cabeça de boi colossal, arregalando os olhos, que Homero achava belos,
como o símbolo de todas as resignações...
E é decerto este o lado mais triste das tabuletas – brasões da democracia, escudos bizarros da
cidade.
Visões d’Ópio
– Os comedores de ópio?
Era às seis da tarde, defronte do mar. Já o sol morrera e os espaços eram pálidos e azuis. As
linhas da cidade se adoçavam na claridade de opala da tarde maravilhosa. Ao longe, a bruma
envolvia as fortalezas, escalava os céus, cortava o horizonte numa longa barra cor de malva e,
emergindo dessa agonia de cores, mais negros ou mais vagos, os montes, o Pão de Açúcar, S.
Bento, o Castelo apareciam num tranqüilo esplendor. Nós estávamos em Santa Luzia, defronte da
Misericórdia, onde tínhamos ido ver um pobre rapaz eterômano, encontrado à noite com o crânio
partido numa rua qualquer. A aragem rumorejava em cima a trama das grandes mangueiras
folhudas, dos tamarindeiros e dos flamboyants, e a paisagem tinha um ar de sonho. Não era a
praia dos pescadores e dos vagabundos tão nossa conhecida, era um trecho de Argel, de Nice,
um panorama de visão sob as estrelas doiradas.
– Sim, dizia-me o amigo com quem eu estava, o éter é um vício que nos evola, um vício de
aristocracia. Eu conheço outros mais brutais – o ópio, o desespero do ópio.
– Mas aqui!
– Aqui. Nunca freqüentou os chins das ruas da cidade velha, nunca conversou com essas caras
cor de goma que param detrás do Necrotério e são perseguidos, a pedrada, pelos ciganos
exploradores? Os senhores não conhecem esta grande cidade que Estácio de Sá defendeu um
dia dos franceses. O Rio é o porto de mar, é cosmópolis num caleidoscópio, é a praia com a vaza
que o oceano lhe traz.