Page 42 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
P. 42
– Eu não sei nada...Isso está para aí...Se soubesse fazer alguma coisa de valor até ficava triste
– só com a idéia de que um dia talvez a levassem do meu país...
Tabuletas
Foi um poeta que considerou as tabuletas – os brasões da rua. As tabuletas não eram para a
sua visão apurada um encanto, uma faceirice, que a necessidade e o reclamo incrustaram na via
pública; eram os escudos de uma complicada heráldica urbana, do armorial da democracia e do
agudo arrivismo dos séculos. Desde que um homem realiza a sua obra – a terminação de uma
epopéia ou a abertura de uma casa comercial – imediatamente o homem batiza-a. No começo da
vida, por instinto, guiado pelos deuses, a sua idéia foi logo a tabuleta. Quem inventou a tabuleta?
Niguém sabe.
É o mesmo que perguntar quem ensinou a criança a gritar quando tem fome. Já no Oriente elas
existiam, já em Atenas, já em Roma, simples, modestas, mas sempre reclamistas. Depois, como
era de prever, evoluíram: evoluíram de acordo com a evolução do homem, e hoje, que se fazem
concursos de tabuletas e há tabuletas compostas por artistas célebres, hoje, na época em que o
reclamo domina o asfalto, as tabuletas são como reflexos de almas, são todo um tratado de
psicologia urbana. Que desejamos todos nós? Aparecer, vender, ganhar.
A doença tomou proporções tremendas, cresceu, alastrou-se, infeccionou todos os meios, como
um poder corrosivo e fatal. Os próprios doentes também a exploram numa fúria convulsiva de
contaminação. Reparai nos jornais e nas revistas. Andam repletos de fotogravuras e de nomes –
nomes e caras, muitos nomes e muitas caras! A geração faz por conta própria a sua identificação
antropométrica para o futuro. Mas o curioso é ver como a publicação desses nomes é pedida, é
implorada nas salas das redações. Todos os pretextos são plausíveis, desde a festa a que se não
foi até à moléstia inconveniente de que foi operada com feliz êxito a esposa. O interessante é
observar como se almeja um retrato nas folhas, desde as escuras alamedas do jardim do crime
até às garden-parties de caridade, desde os criminosos às almas angélicas que só pensam no
bem. Aparecer! Aparecer!
E na rua, que se vê? O senhor do mundo, o reclamo. Em cada praça onde demoramos os nossos
passos, nas janelas do alto dos telhados, em mudos jogos de luz, os cinematógrafos e as
lanternas mágicas gritam através do écran de um pano qualquer o reclamo de melhor alfaiate,
do melhor livreiro, do melhor revólver. Basta levantar a cabeça. As tabuletas contam a nossa vida.
E nessa babel de apelos à atenção, ressaltam, chocam, vivem estranhamente os reclamos,
extravagantes, as tabuletas disparatadas. Quantas haverá no Rio? Mil, duas mil, que nos fazem
rir. Vai um homem num bonde e vê de repente, encimando duas portas em grossas letras estas
palavras: Armazém Teoria.
Teoria de que, senhor Deus? Há um outro tão bizarro quanto este: Casa Tamoio, Grande Armazém
de líquidos comestíveis e miudezas. Como saber que líquidos serão esses comestíveis, de que a
falta de uma vírgula fez um assombro? Faltou a esse pintor o esmero da padaria do mesmo nome
que fez a sua tabuleta em letras de antigo missal para mostrar como se esmera, ou talvez o
descaro deste outro: o maduro cura infalivelmente todas as moléstias nervosas...
Mas as tabuletas extravagantes são as do pequeno comércio, sem a influência de Paris, a
importação direta e caixeiros elegantes de lenço no punho: as vendas, esta criação nacional, os
botequins baratos, os açougues, os bazares, as hospedarias...Na Rua do Catete há uma venda
que se intitula O Leão na Gruta. Por quê? Que tem a batata com o leão que nem ao menos é