Page 41 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– São parecidos. Eu conheço muitos mais: o velho Marcelino, que tem a especialidade de pintar
os homens no pifão; o Henrique da Gama, o primeiro dos nossos fingidores, que faz um metro
de mármore em cada cinco minutos; o Francisco de Paula, que adora os papagaios e faz
caricaturas; o Malheiros, que reúne gatos, cachorros, cascatas e caboclos em cada tela. É o
ideal da arte! São eles os autores dos estandartes dos cordões; são eles que enriquecem! Já
entraste num desses ateliers, no Cunha dos PP, no Garcia Fernandes da Rua do Senhor dos
Passos? Pois é como um desses studios da Flandres antiga, em que os grandes artistas
assinavam os trabalhos dos discípulos, é como se entrasse na grande manufatura da pintura
assinada. Vamos ao Cunha.
– Não, não, por hoje basta.
– Mas pelo menos vem admirar na Rua Frei Caneca 1660 famoso trabalho do Xavier.
– O famoso trabalho?
Se os outros, que não eram famosos e não eram de Xavier, tanta admiração me haviam causado,
imaginem esse, sendo de Xavier e sendo famoso. Precipitei-me num bonde, saltei comovido como
se me assegurassem que eu iria ver a Joconda de Da Vinci, e, quando os meus olhos sôfregos
pousaram na criação do pintor, uma exclamação abriu-me os lábios e os braços. Era simplesmente
um incêndio, o incêndio de uma cidade inteira, a chama ardente, o fogo queimando, torcendo,
destruindo, desmoronando a cidade do vício. Tudo desaparecia numa violentação rubra de
fornalha candente. Seria o fogo sagrado, a purificar como em Gomorra, ou o fogo da luxúria, o
símbolo devastador das paixões carnais, a reprodução alegórica de como a licença dos instintos
devora e queima a vida?
Xavier fora mais longe. Aquele mar de incêndio, aquele braseiro desesperado e perene era a
fixação do fogo maldito da luxúria, era o fogo de Satanás, porque Satanás, em pessoa, no primeiro
plano, completamente cor de pitanga, com as pernas tortas e o ar furioso, abatia a seus pés,
vestida de azul celeste, uma pobre senhora.
Esse último painel punha-me inteiramente tonto. Mas não é uma das grandes preocupações da
Arte comover os mortais, comovê-los até mais não poder? Xavier comovia, eu estava comovido.
Nem sempre é possível obter tanta coisa nas exposições anuais. O meu amigo levou o excesso
a apresentar-me o ilustre artista.
– Aqui está o Xavier.
Voltei-me.
– Os meus sinceros cumprimentos. Há sopro romântico, há imaginação, há ardência nesta
decoração, fiz com o ar dogmático dos críticos ignorantes de pintura.
Ingenuamente, Xavier olhou para mim e, primeiro homem que não se julga célebre neste país,
balbuciou: