Page 40 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Quem fez isto?
– O Paiva, pintor cuja fama é extraordinária entre os colegas.
Voltei-me e de novo fiquei maravilhado. Aquele café não era café, era uma catedral dos grandes
fatos. Na parede fronteira, entre ondas tremendas de um mar muito cinzento rendado de branco,
alguns destroyers rasgavam o azul denso do céu com projeções de holofotes colossais.
– Há coisas piores nos museus.
– Mas isto é digno de uma pinacoteca naval.
O amador, que é o dono do botequim, e o artista cheio de imaginação, que é o Paiva, não se
haviam contentado, porém, com essas duas visões do progresso: a avenida e o holofote. Na outra
parede havia mais uma verdadeira orgia de paisagem: grutas, cascatas, rios marginados de
flores vermelhas, palmas emaranhadas, um pandemônio de cores.
Quando me viu inteiramente assombrado, esse excelente amigo levou-me ao café Paraíso, na
Avenida Floriano.
– Já viste a arte-reclamo, a arte social. Vamos ver a arte patriótica.
– E depois?
– Depois ainda hás de ver os artistas que se repetem, a arte romântica e infernal.
A arte patriótica, ou antes regional, dos pintores da calçada é o desejo, aliás louvável, de reproduzir
nas paredes trechos de aldeia, trechos do estado, trechos da terra em que o proprietário da casa,
ou o pintor, viu a luz. No café Paraíso, o artista, que se chama Viana, pintou a cidade de
Lourenço Marques, vista em conjunto, mas, como qualquer sentimento de amor naquela
elaboração difícil brotasse de súbito no seu coração, Viana colocou à entrada de Lourenço
Marques um couraçado desfraldando ao vento africano o pavilhão do Brasil. Dessas pinturas há
uma infinidade – e eu vi não sei quantas pontes metálicas do Douro ao atravessar algumas ruas.
– Entremos neste botequim, aqui à esquina da Rua da Conceição. Vais conhecer o Colon, pintor
espanhol. Colon tem estilo: este painel é um exemplo. Que vês? Uma paisagem campestre,
arvoredo muito verde, e lá ao fundo um castelo com a bandeira da nacionalidade do dono da casa.
É sempre assim. Há outros mais curiosos. O Oliveira completa os trabalhos sempre com cortinas
iguais às que se usavam nos antigos panos de boca dos teatros. O trabalho é o abuso do azul,
desde o azul claro ao azul negro.
– Mas estás a contar os tiques de grandes pintores.