Page 37 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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feita, é a sugestionadora de crimes, o impulso à exploração de degenerações sopitadas, o abismo
               para  a  gentalha.  Contam  na  Penitenciária  que  o  Carlito  da  Saúde,  preso  a  primeira  vez  por
               desordens, ao chegar ao cubículo, mergulhou na leitura do Carlos  Magno. Sobreveio-lhe uma
               agitação violenta. Ao terminar a leitura anunciou que mataria um homem ao deixar a detenção. E
               no dia da saída, alguns passos adiante, esfaqueou um tipo inteiramente desconhecido. Só esse
               Carlos Magno tem causado mais mortes que um batalhão em guerra. A leitura de todos os folhetos
               deixa, entretanto, a mesma impressão de sangue, de crime, de julgamento, de tribunal. Há, por
               exemplo, uma obra cuja tiragem deixa numa retaguarda lamentável as consecutivas  edições  do
               Cyrano  de  Bergerac.  Intitula-se  Maria  José,  ou  a  filha que assassinou, degolou e esquartejou
               sua própria mãe, Matilde do Rosário da Luz, e começa como nas feiras: – "Atendei, e vereis um
               crime espantoso, um crime novo, o maior de todos os crimes!" Essa Maria ainda era só a matar
               uma só pessoa. No Carlos Magno um tal Reinaldos, ensanduichado em frases de louvor a Nosso
               Senhor, mete-se num rolo doido com os turcos, e o livro louva-o por ir degolando a cada passo
               um homem.


               Tudo  quanto  é  inferior  –  a  calúnia,  o  falso  testemunho,  o  ódio  –  serve  de  entrecho  a  esses
               romances mal escritos. Quando a coisa é em verso, toma proporções de puff carnavalesco. A
               Despedida do João Brandão à sua mulher, filhos e colegas, com um apêndice em que se convence
               o leitor de que João podia ser um herói cristão, é lida nos cortiços com temor e pena. A primeira
               quadra da despedida é assim:


               Andando eu a passear,
               Com amiga do coração.
               Dois passos à retaguarda:
               Estais preso, João Brandão.


               Que se há de fazer diante destes quatro versos nefelibatas? A Despedida tem quarenta e nove
               quadras, fora a resposta da esposa. Uma mistura paranóica de remorso, de tolices de religião,
               saudade  e  covardia,  faz  destas  quadras  o  supra-sumo  da  estética  emotiva  da  turba  –  cujos
               sentimentos oscilam entre o temor e a ambição. João Brandão soluça:


               Adeus, João Brandão,
               Espelho de eu me vestir,
               Tu mataste o menino
               Que para ti se ficou a rir.

               Agora vou degredado,
               A paixão é que me mata;
               Adeus, Carolina Augusta,
               Já não vale a tua prata.


               Para  alegrar  os  leitores,  esses  criminosos  anônimos  cultivaram  o  testamento  dos  bichos.  Já
               testamento é uma idéia inteiramente lúgubre. O testamento da pulga, do mosquito ou da saracura,
               não seria para fazer rebentar de riso os mortais, nem mesmo agora, neste mortal período de
               desinfecções e higiene à outrance. Mas que pensam os  senhores  dessas quadrinhas, das quais
               já se venderam mais de cem mil folhetos, das quais diariamente e perpetuamente se vendem mais
               volumes  que  da  Canaã  de  Graça  Aranha?  Os  testamentos  são  uma  lamentável  relação  de
               legados, sem uma graça, sem uma piada, sem um riso.


               O galo leva quarenta quadras a deixar coisas; a saracura diz que levava, prazenteira, a cantar
               todo o dia dentro do brejo; o macaco fala de hora extrema sem uma careta. Só no testamento do
               papagaio há esta observação pessoal, sempre aplicável às câmaras:
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