Page 39 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– E havemos de encontrar celebridades?
– Pois está claro. Não há cidade no mundo onde haja mais gente célebre que a cidade de S.
Sebastião. Mas não penses que te arrasto a ver algum Vítor Meireles, alguns Castagnetto
apócrifos ou os trabalhos aclamados pelos jornais. Não! Não é isso. Vamos ver, levemente e sem
custo, os pintores anônimos, os pintores da rua, os heróis da tabuleta, os artistas da arte prática.
É curiosíssimo. Há lições de filosofia nos borrões sem perspectiva e nas "botas" sem desenho.
Encontrarás a confusão da populaça, os germes de todos os gêneros, todas as escolas e, por
fim, muito menos vaidade que na arte privilegiada.
Era domingo, dia em que o trabalho é castigar o corpo com as diversões menos divertidas. Saí,
devagar e a pé, a visitar bodegas reles, lugares bizarros, botequins inconcebíveis, e vim arrasado
de confusão cerebral e de encanto. Quantos pintores pensa a cidade que possui? A estatística da
Escola é falsíssima. Em cada canto de rua depara a gente com a obra de um pintor, cuja existência
é ignorada por toda a gente.
O meu amigo começou por pequenas amostras da arte popular, que eu vira sempre sem prestar
atenção: os macacos trepados em pipas de parati, homens de olho esbugalhado mostrando, sob
o verde das parreiras, a excelência de um quinto de vinho, umas mulheres com molhos de trigo
na mão apainelando interiores de padarias e talvez recordando Ceres, a fecunda. Depois iniciou
a parte segunda:
– Vamos entrar agora nas composições das marinhas. Os pintores populares afirmam a sua
individualidade pintando a Guanabara e a praia de Icaraí. Por essas pinturas é que se vê quanto
o "ponto de vista" influi. Há o Pão de Açúcar redondo como uma bola, no Estácio; há o Pão de
Açúcar do feitio de uma valise no Andaraí; e encontras o mesmo Pão, comprido e fino, em S.
Cristóvão. O povo tem uma alta noção dos nossos destinos navais; a sua opinião é exatamente
a mesma que a do ministro da marinha – rumo ao mar! Por isso, não há Guanabara pintada pelos
cenógrafos da calçada que não tenha à entrada da barra um vaso de guerra. A parreira como o
bêbado tem uma conclusão fatal: carga ao mar!
– E depois?
– Depois entramos nas grandes telas, as grandes telas que a cidade ignora.
Estávamos na Rua do Núncio. O meu excelente amigo fez-me entrar num botequim da esquina
da Rua de S. Pedro e os meus olhos logo se pregaram na parede da casa, alheio ao ruído, ao
vozear, ao estrépito da gente que entrava e saía. Eu estava diante de uma grande pintura mural
comemorativa. O pintor, naturalmente agitado pelo orgulho que se apossou de todos nós ao
vermos a Avenida Central, resolveu pintá-la, torná-la imorredoura, da Rua do Ouvidor à Prainha.
A concepção era grandiosa, o assunto era vasto–o advento do nosso progresso estatelava-se ali
para todo o sempre, enquanto não se demolir a Rua do Núncio. Reparei que a Casa Colombo e
o Primeiro Barateiro eram de uma nitidez de primeiro plano e que aos poucos, em tal arejamento,
os prédios iam fugindo numa confusão precipitada.
Talvez esse grande trabalho tivesse defeitos. Os dos "salões" de toda a parte do mundo também
os têm. Mas quantos artigos admiráveis um crítico poderia escrever a respeito! Havia decerto
naquele deboche de casaria o início da pintura moral, da pintura intuitiva, da pintura política, da
pintura alegórica... Indaguei, rouco: