Page 36 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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incansáveis são os vendedores de Bíblias protestantes, com os bolsos das velhas sobrecasacas
               ajoujados de brochuras edificantes.


               – Ó rapaz, por que não fica com esta Bíblia? Dou-lha por dez tostões. É o livro de Deus, onde
               estão as eternas verdades. E se ficar com ela, vai mais este volume de quebra sobre as feras que
               devoram o homem, as feras morais...


               Os outros não pairam em regiões tão espirituais. Há os solenes – o velho Maia, que aprecia as
               encadernações vermelhas; foi guarda-livros e virou para a infelicidade quando, um dia, se lembrou
               de decorar todo o dicionário latino de Saraiva. Há os que têm apelido – Espelho de Psyché, pobre
               homem, negociante, que a má sorte faz andar agora de cesta ao braço, com uma fita verde no
               chapelinho. Há os escandalosos relapsos – o Conegundes, negralhão de cavanhaque, gritador.
               Há os que durante o trabalho percorrem as tabernas, e para impingir aos caixeiros um dos volumes
               ingerem em cada uma dois da branca – o Artur. Há os que têm admirações literárias – o Camões,
               zanaga, que vos recita o I Canto dos Lusíadas de cor. Há os alegres, um turbilhão deles, que
               apregoam dois dias na semana para descansar os outros cinco. Há os que têm a arte do pregão
               e, longe de ir com um embrulhinho perguntar à casa do comprador se quer ficar com a História de
               Carlos Magno, soltam a voz em gorjeios estentóricos, como o Noite Sonorosa:


               Meu Deus, que noite sonorosa!
               O céu está todo estrelado.
               Eu com o cavaquinho na mão
               E a morena ao lado.


               Isto em pleno dia.


               Cada  sujeito  desses  pode  passar  a  vida  bem.  As  livrarias  vendem  baratíssimo  os  livrecos
               procurados. Em cada um, os vendedores ganham, no mínimo, seiscentos por cento. Há alguns
               que, trabalhando com vontade e sabendo lançar – as orações, as modinhas  ou a inefável História
               da Donzela  Teodora,  arranjam  uma  diária  de dez  mil  réis,  sem  grande  esforço.  Daí,  todo  dia
               aumentar o número de camelots de livros, vir começando a formar-se essa  próspera profissão da
               miséria que todas as cidades têm, ávida e lamentável, num arregimentar de pobres propagandistas
               do Evangelho e do Espiritismo, de homens que a sorte deixou de proteger, de malandros cínicos,
               de rapazes vadios.


               Os livros, porém, de grande venda ficam sempre os mesmos.


               Nós  não  gostamos  de  mudar  em  coisa  nenhuma,  nem  no  teatro,  nem  na  paisagem,  nem  na
               literatura. É provável que o divórcio tenha caído por esse inveterado e extraordinário amor de
               não mudar, que nos obceca. Desde 1840, o fundo das livrarias ambulantes, as obras de venda
               dos camelots têm sido a Princesa Magalona, a Donzela Teodora, a História de Carlos Magno, a
               Despedida de João Brandão e a Conversaçâo do Pai Manuel com o Pai  José  – ao todo uns vinte
               folhetos sarrabulhentos de crimes e de sandices. Como esforço de invenção e permanente êxito,
               apareceram, exportados de Portugal, os testamentos dos bichos, o Conselheiro dos Amantes e
               uma sonolenta Disputa divertida das grandes bulhas que teve um homem com sua mulher por não
               lhe querer deitar uns fundilhos nos calções velhos.


               Essa literatura, vorazmente lida na detenção, nos centros de vadiagem, por homens primitivos,
               balbuciada à luz dos candeeiros de querosene nos casebres humildes, piegas, hipócrita e mal
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