Page 35 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Despedi-me, comecei a andar devagar. Um dos urubus aproximou-se.
– Estiveram contando coisas a nosso respeito?
– Não, absolutamente.
– Que se há de fazer? A comissão é tão pequena! Quando quiser uma coroa...
– Deus queira que não! fiz assustado.
E apertei a mão do homem urubu com um tremor de superstição e de susto.
Os Mercadores de Livros e a Leitura das Ruas
Exatamente na esquina do teatro S. Pedro, há dez anos, Arcanjo, italiano, analfabeto, vende
jornais e livros. É gordo, desconfiado e pançudo. Ao parar outro dia ali, tive curiosidade de ver os
volumes dessa biblioteca popular. Havia algumas patriotadas, a Questão da Bandeira, o
Holocausto, a d. Carmen de B. Lopes, a Vida do Mercador e de Antônio de Pádua, o Evangelho
de um Triste e os Desafogos Líricos. Estavam em exposição, cheios de pó, com as capas
entortadas pelo sol.
– Vende-se tudo isso?
– Oh! não. Há quase um ano que os tenho. Os outros sim – modinhas, orações, livros de sonhos,
a História da Princesa Magalona, o Carlos Magno, os testamentos dos bichos.
Levantei as mãos para o céu como pedindo testemunho do alto. As obras vendáveis ao povo deste
começo de século eram as mesmas devoradas pelo povo dos meados do século passado!
– Mas não é possível...
– Pode perguntar aos outros vendedores.
Atirei-me a esse inquérito psicológico. Os vendedores de livros são uma chusma incontável que
todas as manhãs se espalha pela cidade, entra nas casas comerciais, sobe aos morros, percorre
os subúrbios, estaciona nos lugares de movimento. Há alguns anos, esses vendedores não
passavam de meia dúzia de africanos, espapaçados preguiçosamente como o João Brandão na
Praça do Mercado. Hoje, há de todas as cores, de todos os feitios, desde os velhos maníacos aos
rapazolas indolentes e aos propagandistas da fé. A venda não é franca senão em alguns pontos
onde se exibem os tabuleiros com as edições falsificadas do Melro de Junqueiro e da Noite na
Taverna. Os outros batem a cidade, oferecendo as obras. E há então toda uma gama de maneiras
para passar a fazenda. Os mais atilados, os mais argutos, os mais