Page 34 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Tal qual. E terminam sempre com a nota policial: quarenta anos presumíveis.


               Rimos  ambos.  O  sol  está  brilhante  e  o  céu,  inteiramente  azul,  dá-nos  desejos  de  viver  e  de
               compreender a vida pelos seus mais ridentes aspectos.


               – Os urubus devem ter nome?


               – Têm, são urubus urbanos. Vê o senhor aquele? É o Chico Basílio. Há cerca de 30 anos exerce
               a profissão. Está vendo aquele grupo? Encontra lá o Brasilino, o Caranguejo, o Bilu, o Espanhol
               da  Saúde,  o  Mangonga.  Os  outros  são  o  Joaquim,  o  Tatuí,  o  Paulino,  o Cá  e  Lá,  o  Buriti, o
               Manduca.


               Neste momento um mocinho de lápis e linguado de papel na mão indagou, entrando:


               – Alguma coisa de novo?


               – Sim, pode entrar.


               O mocinho desapareceu. O complacente informante sorria.


               – Outro urubu.


               – Outro?


               – São os que parecem reporters. Vêm para a secretaria da Santa Casa munidos de tiras de almaço
               para copiar dos livros os nomes e residências das pessoas mortas, isto é, só copiam os daquelas
               cujo enterro custar mais de 100$. Saem daqui para o lugar indicado e ficam às portas à espera
               que o corpo saia, um, dois, cinco  às vezes. Quando o cadáver sai  e a família ainda está aos
               soluços, embarafustam com as amostras de luto. Contaram-me que chegam à concorrência,  a
               ver  quem  faz  o  luto  em  24  horas  mais  em  conta.  Neste  serviço  conheço  o Ferraz, o Saul, o
               Guedes, o Matos, o Araújo, o Campos, o Mesquita.


               Eu ouvia o meu informante um pouco melancólico. Que diabo! Por que urubus, naquele pedaço
               da cidade que cheira a cadáveres e a morte?


               Não há terra onde prospere como nesta a flora dos sem-ofício e dos parasitas que não trabalham.
               Esses  sujeitinhos  vestem  bem,  dormem  bem,  chegam  a  ter  opiniões,  sistema  moral,  idéias
               políticas. Ninguém lhes pergunta a fonte inexplicável do seu dinheiro. Aqueles pobres rapazes,
               lutando  pela  vida,  naquele  ambiente  atroz  da  morte,  vestindo  a  libré  das  pompas  fúnebres,
               impingindo com um sorriso à tristeza coroas e crepes, só para ganhar honestamente a vida, eram
               dignos de respeito. Por que urubus? Maçonaria da má  sorte, pelotão dos tristes, seres sem o
               conforto de uma simpatia, no limite do nada, encarregados de fornecer os símbolos de uma dor
               que cada vez a humanidade sente menos.
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