Page 32 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Eu vinha vindo com o frescor da manhã por aquele trecho da praia de Santa Luzia, tão suave e
               tão formoso, onde se amontoam as coisas lúgubres da cidade – a Santa Casa, o Necrotério, o
               serviço  de  enterramentos.  Entre  as  árvores  fronteiras  ao  hospital  vendedores  ambulantes
               vociferavam os pregões de canjica, de mingau, de pães doces; dos bondes pejados de gente
               saltavam criaturas doentes, paralíticas algumas, de óculos outras. Pelas escadas de pedra lavada
               formigava  constantemente  a  turba  doente,  mostrando  as  mazelas,  como  um  insulto  e uma
               afronta aos que estavam sãos, entre os enfermeiros do hospital, de calça de zuarte azul e dólmã
               pardo, nédios e sadios. Eu vinha precisamente pensando como gozam saúde os enfermeiros, e
               aquelas  frases  maçônicas  fizeram-me  mal.  Parei,  consultei  o  relógio.  Os  quatro  tipos  não  se
               ralavam mais com a minha presença. Dois olhavam com avidez os bondes que vinham da Rua do
               Passeio; dois estavam totalmente voltados para o lado da Faculdade. Ao aparecer um bonde, um
               magrinho bradou:


               – Largo!


               Prestei atenção. Do tramway em movimento saltou um cavalheiro defronte do Necrotério.


               – De cima! bradou outro tipo.


               – Última! regougou o terceiro.


               E cercaram o cavalheiro.


               – V. Sa. há de aceitar um cartãozinho da nossa casa. Não precisa de se incomodar. Tratamos
               de tudo! Faça negócio comigo!


               A um tempo falavam todos, e o cavalheiro, coberto de luto, com o lenço empapado de suor e de
               lágrimas, murmurava, como se estivesse a receber pêsames:


               – Muito obrigado! Muito obrigado!


               Aproximei-me de um dos funcionários do serviço mortuário.


               – Que espécie de gente é essa?


               – Oh! não conhece? São os urubus!


               – Urubus?


               – Sim, os corvos.. . É o nome pelo qual são conhecidos aqui agenciadores de coroas e fazendas
               para luto. Não é muito numerosa a classe, mas que faro, que atividade!
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