Page 19 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
P. 19

– Serve?


               – Rua!


               – Mais fica!


               E quando o ratoeiro volta, traz o seu dia fartamente ganho...


               Tínhamos parado à esquina da Rua Fresca. A vida redobrava aí de intensidade,  não  de trabalho,
               mas de deboche.


               Nos botequins, fonógrafos roufenhos esganiçavam canções picarescas; numa taberna escura com
               turcos e fuzileiros navais, dois violões e um cavaquinho repinicavam. Pelas calçadas, paradas às
               esquinas, à beira do quiosque, meretrizes de galho de arruda atrás da orelha e chinelinho na ponta
               do pé, carregadores espapaçados, rapazes de camisa de meia e calça branca bombacha com o
               corpo  flexível  dos  birbantes,  marinheiros,  bombeiros,  túnicas  vermelhas  e  fuzileiros  –  uma
               confusão, uma mistura de cores, de tipos, de vozes, onde a luxúria crescia.


               De repente o meu amigo estacou. Alguns metros adiante, na Rua Fresca, um rapaz doceiro arriara
               a caixa, e sentado num portal, entregava o braço aos exercícios de um petiz da altura de um metro.
               Junto ao grupo, o cigano, com outro embrulho, falava.


               – Vês? Aquele pequeno é marcador, faz tatuagens, ganha a sua vida com três agulhas e um
               pouco de graxa, metendo coroas, nomes e corações nos braços dos vendedores ociosos. O cigano
               molambeiro aproveita o estado de semi-dor e semi-inércia do rapaz para lhe impingir qualquer um
               dos seus trapos...um psicólogo, como todos os da sua raça, psicólogo como  as suas irmãs que
               lêem a buena dicha por um tostão e amam por dez com consentimento deles.


               Oh! essas pequenas profissões ignoradas, que são partes integrantes do mecanismo das grandes
               cidades!


               O Rio pode conhecer muito bem a vida do burguês de Londres, as peças de Paris, a geografia
               da Manchúria e o patriotismo japonês. A apostar, porém, que não conhece nem a sua própria
               planta, nem a vida de toda essa sociedade, de todos esses meios  estranhos  e exóticos, de todas
               as profissões que constituem o progresso, a dor, a miséria da vasta Babel que se transforma. E
               entretanto,  meu  caro,  quanto  soluço,  quanta  ambição,  quanto  horror  e  também  quanta
               compensação na vida humilde que estamos a ver.


               Estos son algunos hombres
               De obligaciones, que pasan
               Necesidad, y procuran
               De  esta  suerte  remediarla
               Saliendose a los caminos...
   14   15   16   17   18   19   20   21   22   23   24