Page 17 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Coitados! Andam todos na dolorosa academia da miséria, e, vê tu, até nisso há vocações! Os
trapeiros, por exemplo, dividem-se em duas especialidades – a dos trapos limpos e a de todos os
trapos. Ainda há os cursos suplementares dos apanhadores de papéis, de cavacos e de chumbo.
Alguns envergonham-se de contar a existência esforçada. Outros abundam em pormenores e são
um mundo de velhos desiludidos, de mulheres gastas, de garotos e de crianças, filhos de família,
que saem, por ordem dos pais, com um saco às costas, para cavar a vida nas horas da limpeza
das ruas.
De todas essas pequenas profissões a mais rara e a mais parisiense é a dos caçadores, que
formam o sindicato das goteiras e dos jardins. São os apanhadores de gatos para matar e levar
aos restaurants, já sem pele, onde passam por coelho. Cada gato vale dez tostões no máximo.
Uma só das costelas que os fregueses rendosos trincam, à noite, nas salas iluminadas dos hotéis,
vale muito mais. As outras profissões são comuns. Os trapeiros existem desde que nós possuímos
fábricas de papel e fábricas de móveis. Os primeiros apanham trapos, todos os trapos
encontrados na rua, remexem o lixo, arrancam da poeira e do esterco os pedaços de pano, que
serão em pouco alvo papel; os outros têm o serviço mais especial de procurar panos limpos, trapos
em perfeito estado, para vender aos lustradores das fábricas de móveis. As grandes casas desse
gênero compram em porção a traparia limpa. A uns não prejudica a intempérie, aos segundos a
chuva causa prejuízos enormes. Imagina essa pobre gente, quando chove, quando não há sol,
com o céu aberto em cataratas e, em cada rua, uma inundação!
– Falaste, entretanto, dos sabidos?
– Ah! os sabidos dedicam-se a pesquisar nos montes de cisco as botas e os sapatos velhos, e
batem-se por duas botas iguais com fúria, porque em geral só se encontra uma desirmanada.
Esses infelizes têm preço fixo para o trabalho, uma tarifa geral combinada entre os compradores,
os italianos remendões. Um par de botas, por exemplo, custa 400 réis, um par de sapatos 200
réis. As classes pobres preferem as botas aos sapatos. Uma bota só, porém, não se vende por
mais de 100 réis.
– Mas é bem pago!
– Bem pago? Os italianos vendem as botas, depois de consertadas, por seis e sete mil réis! E o
mesmo que acontece aos molambeiros ambulantes como o cigano que acabamos de ver – os
belchiores compram as roupas para vendê-las com quatrocentos por cento de lucro. Há ainda os
selistas e os ratoeiros. Os selistas não são os mais esquadrinhadores, os agentes sem lucro do
desfalque para o cofre público e da falsificação para o burguês incauto. Passam o dia perto das
charutarias pesquisando as sarjetas e as calçadas à cata de selos de maços de cigarros e selos
com anéis e os rótulos de charutos. Um cento de selos em perfeito estado vende-se por 200
réis. Os das carteiras de cigarros têm mais um tostão. Os anéis dos charutos servem para vender
uma marca por outra nas charutarias e são pagos cem por 200 réis. Imagina uns cem selistas à
cata de selos intactos das carteirinhas e dos charutos; avalia em 5% os selos perfeitos de todos
os maços de cigarros e de todos os charutos comprados neste país de fumantes; e calcula, após
este pequeno trabalho de estatística, em quanto é defraudada a fazenda nacional diariamente só
por uma das pequenas profissões ignoradas.
– Gente pobre a morrer de fome, coitados...
– Oh! não. O pessoal que se dedica ao ofício não se compõe apenas do doloroso bando de pés
descalços, da agonia risonha dos pequenos mendigos. Trabalham também na profissão os