Page 22 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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porta  aberta,  cuja  alegria  e  cujas  dores  se  desdobram no  estreito  espaço  das  alfurjas  e  das
               chombergas, cujas tragédias de amor morrem nos cochicholos sem ar, numa  praga que se faz de
               lágrimas. A tatuagem é a inviolabilidade do corpo e a história das paixões. Esses riscos nas peles
               dos homens e das mulheres dizem as suas aspirações, as suas horas de ócio e a fantasia da sua
               arte e a crença na eternidade dos sentimentos – são a exteriorização da alma de quem os traz.


               Há três casos de tatuagem no Rio, completamente diversos  na sua significação moral: os negros,
               os turcos com o fundo religioso e o bando das meretrizes, dos rufiões e dos humildes, que se
               marcam por crime ou por ociosidade. Os negros guardam a forma fetiche; além dos golpes sarados
               com o pó preservativo do mau olhado, usam figuras complicadas. Alguns, como o Romão da Rua
               do Hospício, têm tatuagens feitas há cerca de vinte anos, que se conservam nítidas, apesar da
               sua cor – com que se confunde a tinta empregada.


               Quase todos os negros têm um crucificado. O feiticeiro Ononenê, morador à Rua do Alcântara,
               tem do lado esquerdo do peito as armas de Xangô, e Felismina de Oxum a figura complicada da
               santa  d’água  doce.  Esses  negros  explicam  ingenuamente  a  razão  das  tatuagens.  Na  coroa
               imperial hesitam, coçam a carapinha e murmuram, num arranco de toda a raça, num arranco mil
               vezes secular de servilismo inconsciente:


               – Eh! Eh! Pedro II não era o dono?


               E não se fotografam com um pavor surdo, como se fosse crime usar essas marcas simbólicas.


               Os turcos são muçulmanos, maronitas, cismáticos, judeus, e nestas religiões diversas não há
               gente mais cheia de abusões, de receios, de medos. Nas casas da Rua da Alfândega, Núncio e
               Senhor dos Passos, existem, sob o soalho, feitiçarias estranhas, e a tatuagem forra a pele dos
               homens como amuletos. Os maronitas pintam iniciais, corações; os cismáticos têm verdadeiros
               eikones primitivos nos peitos e nos braços; os outros trazem para o corpo pedaços de paramentos
               sagrados. É por exemplo muito comum turco com as mãos franjadas de azul, cinco franjas nas
               costas da mão, correspondendo aos cinco dedos. Essas cinco franjas são a simbolização das
               franjas da taleth, vestimenta dos Khasan, nas quais está entrançado a fio de ouro o grande nome
               de Ihaveh.


               A outra camada é a mais numerosa, é toda a classe baixa do Rio – os vendedores ambulantes,
               os operários, os soldados, os criminosos, os rufiões, as meretrizes. Para marcar tanta gente a
               tatuagem tornou-se uma indústria com chefes, subchefes e praticantes.


               Quase sempre as primeiras lições vieram das horas de inatividade na cadeia, na penitenciária e
               nos quartéis; mas eu contei só na Rua Barão de S. Félix, perto do Arsenal de Marinha, e nas ruelas
               da Saúde, cerca de trinta marcadores. Há pequenos de dez, doze anos, que saem de manhã para
               o trabalho, encontram os carregadores, os doceiros sentados nos portais.


               – Quer marcar? perguntam; e tiram logo do bolso um vidro de tinta e três agulhas.


               Muitos portugueses, cujos braços musculosos guardam coroas da sua terra e o seu nome por
               extenso, deixaram-se marcar porque não tinham que fazer.
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