Page 24 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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amor, do desprezo, do amuleto, posse, do preservativo, das idéias patrióticas do indivíduo, da sua
               qualidade primordial.


               Quase todos os rufiões e os rufistas do Rio têm na mão direita entre o polegar e o indicador, cinco
               sinais que significam as chagas. Não há nenhum que não acredite derrubar o adversário dando-
               lhe uma bofetada com a mão assim marcada. O marinheiro Joaquim tem um Senhor cruficificado
               no peito e uma cruz negra nas costas. Mandou fazer esse símbolo por esperteza. Quando sofre
               castigos, os guardiões sentem-se apavorados e sem coragem de sová-lo.


               – Parece que estão dando em Jesus!


               A sereia dá lábia, a cobra atração, o peixe significa ligeireza na água, a âncora e a estrela o homem
               do mar, as armas da República ou da Monarquia a sua compreensão política. Pelo número de
               coroas da Monarquia que eu vi, quase todo esse pessoal é monarquista.


               Os lugares preferidos são as costas, as pernas, as coxas, os braços, as mãos. Nos braços estão
               em geral os nomes das amantes, frases inteiras, como por exemplo esta frase de um soldado
               de um regimento de cavalaria: viva o marechal de ferro!... desenhos sensuais, corações.  O tronco
               é guardado para as coisas importantes, de saudade, de luxúria ou de religião. Hei de lembrar
               sempre o Madruga tatuando um funileiro, desejoso de lhe deixar uma estrela no peito.


               – No peito não! cuspiu o mulato, no peito eu quero Nossa Senhora!


               A sociedade, obedecendo à corrente das modernas idéias criminalistas, olha com desconfiança
               a tatuagem. O curioso é que – e esses estranhos problemas de psicologia talvez não sejam nunca
               explicados – o curioso é que os que se deixam tatuar por não terem mais que fazer, em geral, o
               elemento puro das aldeias portuguesas, o único quase incontaminável da baixa classe do Rio,
               mostram  sem  o  menor  receio  os  braços,  enquanto  os  criminosos,  os  assassinos,  os  que  já
               deixaram a ficha no gabinete de antropometria, fazem o possível para ocultá-los e escondem os
               desenhos do corpo como um crime. Por quê? Receio de que sejam sinais por onde se faça o seu
               reconhecimento?  Isso  com  os  da  polícia  talvez.  Mas  mesmo  com  pessoas,  cujos  intentos
               conhecem,  o  receio  persiste,  porque  decerto  eles  consideram  aquilo  a  marca  de  fogo  da
               sociedade, de cuja tentação foram incapazes de fugir, levados pela inexorável fatalidade.


               Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza,
               de raça, e tatuagens obscenas.


               A vida no seu feroz egoísmo é o que mais nitidamente ideografa a tatuagem.


               As  meretrizes  e  os  criminosos  nesse  meio  de  becos  e  de  facadas  têm  indeléveis  idéias  de
               perversidade  e  de  amor.  Um  corpo  desses,  nu,  é  um  estudo  social.  As  mulheres  mandam
               marcar corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem pelo processo do
               Madruga, e marcam o mesmo nome no pé, no calcanhar.


               – Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano. Tenho-te aqui, desgraça! E mostram ao
               malandro, batendo com o chinelo, o seu nome odiado.
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