Page 16 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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O catraieiro sorria, o cigano era presa de uma agitação estranha, agarrando a vítima pelo braço,
pela camisa, dando pulos, para lhe cochichar ao ouvido palavras de maior tentação; ninguém
naquele perpétuo tumulto, ninguém no rumor do estômago da cidade, olhava sequer para o
negócio desesperado de cigano. Eduardo, que nessa tarde passeava comigo, arrastou-me pelo
ex-Largo do Paço, costeando o cais até a velha estação das barcas.
– Admiraste aquele negociante ambulante?
– Admirei um refinado "vigarista"...
– Oh! meu amigo, a moral é uma questão de ponto de vista. Aquele cigano faz parte de um exército
de infelizes, a que as condições da vida ou do próprio temperamento, a fatalidade, enfim, arrasta
muita gente. Lembras-te de La romera de Santiago, de Velez de Guevara? Há lá uns versos que
bem exprimem o que são essas criaturas:
Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla
Saliendose a los caminos...
É quanto basta como moral. Não sejamos excessivos para os humildes.
O Rio tem também as suas pequenas profissões exóticas, produto da miséria ligada às fábricas
importantes, aos adelos, ao baixo comércio; o Rio, como todas as grandes cidades, esmiúça no
próprio monturo a vida dos desgraçados. Aquelas calças do cigano, deram-lhas ou apanhou-as
ele no monturo, mas como o cigano não faz outra coisa na sua vida senão vender calçar velhas
e anéis de plaquet, aí tens tu uma profissão da miséria, ou se quiseres, da malandrice – que é
sempre a pior das misérias. Muito pobre diabo por aí pelas praças parece sem ofício, sem
ocupação. Entretanto, coitados! o ofício, as ocupações, não lhes faltam, e honestos, trabalhosos,
inglórios, exigindo o faro dos cães e a argúcia dos reporters.
Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos
magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver, os
inconscientes aplicadores à vida das cidades daquele axioma de Lavoisier: nada se perde na
natureza. A polícia não os prende, e, na boêmia das ruas, os desgraçados são ainda explorados
pelos adelos, pelos ferros-velhos, pelos proprietários das fábricas...
– As pequenas profissões!... É curioso!
As profissões ignoradas. Decerto não conheces os trapeiros sabidos, os apanha-rótulos, os
selistas, os caçadores, as ledoras de buena dicha. Se não fossem o nosso horror, a Diretoria de
Higiene e as blagues das revistas de ano, nem os ratoeiros seriam conhecidos.
– Mas, senhor Deus! é uma infinidade, uma infinidade de profissões sem academia! Até parece
que não estamos no Rio de Janeiro...