Page 15 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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melhore  enquanto  ela  existir.  Não  é  uma  rua  onde  sofrem  apenas  alguns  entes,  é  a  rua
               interminável, que atravessa cidades, países, continentes, vai de pólo a pólo; em que se alanceiam
               todos os ideais, em que se insultam todas as verdades, onde sofreu Epaminondas e pela qual
               Jesus passou. Talvez que extinto o mundo, apagados todos os astros, feito o universo treva, talvez
               ela ainda exista, e os seus soluços sinistramente ecoem na total ruína, rua das lágrimas, rua do
               desespero – interminável rua da Amargura.


               O QUE SE VÊ NAS RUAS


               Pequenas Profissões


               O cigano aproximou-se do catraieiro. No céu, muito azul, o sol derramava toda  a sua luz dourada.
               Do cais via-se para os lados do mar, cortado de lanchas, de velas brancas, o desenho multiforme
               das ilhas verdejantes, dos navios, das fortalezas. Pelos boulevards sucessivos que vão dar ao
               cais, a vida tumultuária da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais
               brutal, mais gritada, naquele trecho do Mercado, naquele  pedaço da rampa, viscoso de imundícies
               e de vícios. O cigano, de frack e chapéu mole, já falara a dois carroceiros moços e fortes, já se
               animara a entrar numa taberna de freguesia retumbante. Agora, pelos seus gestos duros, pelo
               brilho do olhar, bem se percebia que o catraieiro seria a vítima, a vítima definitiva, que ele talvez
               procurasse desde manhã, como um milhafre esfomeado.


               Eduardo e eu caminhamos para a rampa, na aragem fina da tarde que se embebia de todos
               aqueles  cheiros  de  maresia,  de  gordura,  de  aves  presas,  de  verduras.  O  catraieiro  batia
               negativamente com a cabeça.


               – Uma calça, apenas uma, em muito bom estado.


               – Mas eu não quero.


               – Ninguém lhe vende mais barato, palavra de honra. E a fazenda? Veja a fazenda.


               Desenrolou com cuidado um embrulho de jornal. De dentro surgiu um pedaço de calça cor de
               castanha.


               – Para o serviço! Dois mil réis, só dois!...Eu tenho família, mãe, esposa, quatro filhos menores.
               Ainda não comi hoje! Olhe, tenho aqui uns anéis...não gosta de anéis?


               O  catraieiro  ficara,  sem  saber  como,  com  o  embrulho  das  calças,  e  o  seu  gesto  fraco  de
               negativa bem anunciava que iria ficar também com um dos anéis. O cigano desabotoara o frack,
               cheio de súbito receio.


               – É um anel de ouro que eu achei, ouro legítimo. Vendo barato: oito mil réis apenas. Tudo dez
               mil réis, conta redonda!
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