Page 134 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
P. 134

evoluir na calçada, romântico, gozador e peralta. A gargalhada da rua faz-se de uma porção de
               risos, o soluço da paixão de muitos soluços – a musa é policroma, reflete a população confusa e
               babélica tal qual ela é. Já se não encontram modinhas com a beleza de forma do Talvez não
               creias.


               Talvez não creias que por ti sou louco
               Tens feito pouco porque tu és má
               Talvez duvides, mas, donzela, eu juro
               Que amor tão puro como o meu não há.


               Ou com a graça meio infantil no Tipe-ti:


               Coração, que tens com Lília?
               Desde que seus olhos vi
               Pulas e bates no peito
               Tape, tepi, tipi, ti
               Coração, não gostes dela
               Que ela não gosta de ti.


               Os grandes poetas não fazem mais versos para toda gente – o nível intelectual da classe média
               subiu assim como a proporção geométrica da sua pretensão, e os vates são parnasianos, são
               simbolistas, procuram a forma sensível e a essência oculta.


               Em  compensação  brotam  na  calçada,  como  cogumelos,  os  bardos  ocasionais  da  sátira  e  da
               paixão;  e,  varejando  botequins  e  ruelas  de  Suburra  outros  Zuzus  vamos  encontrar  em  pleno
               triunfo. Esses vates têm uma só preocupação séria – cantar. Cantam como as cigarras e o canto
               dá-lhes para viver no eterno  verão desta  terra  abundante.  Quando  não há dinheiro,  inventam
               para uma certa música conhecida os versos do Ferramenta ou Sobe ou Arrebenta, O Roca da Rua
               da Carioca, a cantiga Ah! se Fosses Minha, mandam imprimir e vendem tudo por dois tostões.
               Admiram-se  que  eles  imprimam  e,  o  que  é  mais,  esgotem  edições,  milheiros  e  milheiros  de
               exemplares? Pois imprimem como qualquer poeta. Apenas eles vendem, e a maioria dos poetas
               oferece grátis aos amigos...


               Mas os poetas da calçada não imprimem e vendem só. O espírito prático é, evidentemente, um
               progresso. Eles, entretanto, progrediram mais. Há trinta anos o bardo tinha uma  gaforinha oleada
               e uma unha – desapareceram. Ao começo, logo que a musa caiu na populaça, resolvida a não
               voltar jamais aos salões, os versos à margem da poesia eram ainda uma qualidade especial de
               certo grupo limitado. Hoje a musa é de todo o gênero, o bardo deixou de ser um tipo porque todos
               cantam, e a sua história, que ninguém quer saber, é um conjunto de elementos para a análise da
               vida urbana.


               A musa tem preferidos e tem estetas, tem críticos. Como chovesse muito um dia, acolheu-se a um
               desvão de porta. Dentro bebiam. Para beber também, ela cantou, e criou-se o cabaret nacional,
               esses estabelecimentos inéditos chamados chopps. Quando o chopp percebeu que perdia a graça
               sem ela, a musa da calçada tinha invertido o seu sistema romântico. Outrora ela bebia para cantar.
               Agora canta para beber. A indústria, o interesse, o lucro, o lucro, essa miragem que tanto faz
               progredir os povos como as literaturas, propagou-a, espalhou-a, tornou-a torrencial. A musa delira
               hoje numa pândega infrene, de bodega em bodega, de chopp  em chopp, de tablado em tablado.
               Nesse turbilhão de bardos e de cantares surgiam alguns mais dados à evidência – o Geraldo, o
               Eduardo das Neves, o esteta Catulo da Paixão Cearense! O Geraldo deitou elegância e botinas
               de polimento; o Eduardo das Neves tinha bombeiro, antes de
   129   130   131   132   133   134   135   136   137   138   139