Page 136 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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"Leitor! ascende a tal culminância o orgulho que tenho de saber poetar para o canto que, sem
acanhamento, teria o desaforo de vos dizer que o dia em que um competente me dissesse: esta
ou aquela frase não foi bem adaptada, não diz o que diz a música, está incolor, esse dia seria o
último da minha vida, porque ou suicidar-me-ia ou sucumbiria de pesar por ver aquele meu orgulho
destronado."
Catulo, hiperestesia da musa urbana, é, apesar de tanta trapalhada, capaz de fazer célebres vários
poetas, quase desconhecido e vive à margem da poesia, poeta da musa anônima, poeta da
calçada...
Porque a musa não se rala com a interpretação de partituras.
Basta-lhe o fato, o sucesso do dia, três gotas de paixão e um violão. Vibra acordes patrióticos, a
dúvida, o desejo, e é o necessário para ser compreendida.
A característica principal dos poetas da calçada é o patriotismo, mas um patriotismo muito diverso
do nosso e mesmo do da populaça –é o amor da pátria escoimado de ódios, o amor jacobino, o
amor esterilizado para os de casa e virulento para os de fora. O homem do povo é no Brasil
discursadoramente patriota. A sua questão principal é o Brasil melhor do que qualquer outro país.
O sucesso e a popularidade de Santos Dumont são devidos menos aos seus trabalhos de aviação
que ao ter causado a admiraçâo de Paris. Para o patriota ele não se fez admirado – dominou. A
popularíssima cançoneta do Beranger das Neves é um atestado:
A Europa curvou-se ante o Brasil
E aclamou parabéns em meigo tom
Brilhou lá no céu mais uma estrela
Apareceu Santos Dumont.
Há pelo menos duas tolices em tal moxinifada. O music hall ficava, entretanto, apinhado de jovens
soldados, de marinheiros, de mocinhos patriotas; e eu hei de lembrar sempre certa vez em que,
passando pelo café-cantante, ouvi o barulho da apoteose e entrei. Estava o Dudu das Neves,
suado, com a cara de piche a evidenciar trinta e dois dentes de uma alvura admirável, no meio do
palco e em todas as outras dependências do teatros a turba aclamava. O negro já estava sem
voz.
Assinalou para sempre o século vinte
O herói que assombrou o mundo inteiro
Mais alto que as nuvens, quase Deus
É Santos Dumont um brasileiro
E após essa rajada de hipérboles ao Dumont que todos nós conhecemos, sportman, elegante,
acionista da Mogiana, bem homem da sua época, eu vi no estridor das aclamações Fausto
Cardoso, poeta, político, patriota, agitar freneticamente um lenço, pálido de emoção... Era a vitória
da calçada, era a poesia alma de todos nós, era o sentimento que brota entre os paralelepípedos
com a seiva e a vida da pátria. Esse patriotismo é a nota persistente dos poetas sem nome,
patriotismo que quer dominar o estrangeiro e jamais exibe, como exibem os jornalistas, a infâmia
dos políticos e as fraquezas dos partidos. A musa urbana enaltece sempre os seus homens e
quando odeia oculta o ódio para não o mostrar aos de fora. Todos os episódios da revolta foram
postos em verso. Floriano tem entre outras aquela quadra: