Page 131 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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A musa das ruas é a musa que viceja nos becos e rebenta nas praças, entre o barulho da populaça
               e a ânsia de todas as nevroses, é a musa igualitária, a musa-povo, que desfaz os fatos mais graves
               em lundus e cançonetas, é a única sem pretensões porque se renova como a própria Vida. Se o
               Brasil é a terra da poesia, a sua grande cidade é o armazém, o ferro-velho, a aduana, o belchior,
               o grande empório das formas poéticas. Nesta Cosmópolis, que é o Rio, a poesia brota nas classes
               mais heterogêneas. A câmara  regurgita de vates, o hospício tem dúzias de versejadores, as
               escolas grosas de nefelibatas, a cadeia fornadas de elegíacos. Onde for o homem lá estará à sua
               espera, definitiva e teimosa, a musa. Se tomardes um bonde modesto, encontrareis o palpite do
               bicho em verso nas costas do recibo; se  entrais  nos tramways de Botafogo, o recibo convida V.
               Exa numa quadra a ir a Copacabana. Os cafés são focos de micróbio rítmico, os blocos de folhinha,
               as balas de estalo, as adivinhações dos pássaros sábios, as poliantéias, esse curioso gênero de
               engrossamento  tipográfico  e  indireto,  as  tabuletas,  os  reclamos,  os  jornais  proclamam
               incessantemente a preocupação  poética  da cidade, o anônimo mas formidável anseio de um
               milhão de almas pelo ritmo, que é a pulsação arterial da palavra. O verso domina, o verso rege, o
               verso  é  o  coração  da  urbs,  o  verso  está  em  toda  a  parte  como  o  resultado  absoluto  das
               circunvoluções da cidade. E a musa urbana, a musa anônima, é como o riso e o soluço, a chalaça
               e o suspiro dos sem-nome e dos humildes.


               A musa  urbana! Ela  é  a canção,  começa com os povos  na história, e  talvez  tivesse,  como  o
               homem, a sua pré-história. Contar-lhe a idade é tentar um mergulho intérmino na clássica noite
               dos tempos. O primeiro homem, para dar a expressão à idéia, deu-lhe o ritmo; a primeira tribo,
               para exprimir os sentimentos mais complexos, descobriu a cadência. A civilização é a apoteose
               do verso popular, porque mais nitidamente acentua a facilidade de exprimir da massa ignorante.
               Os  gregos faziam modinhas  a  todo o instante  e a  todo o  propósito,  e davam  para  cada uma
               denominação especial. Antes de saber ler tinham o sentimento do metro poético, e é o grave
               Aristóteles que nos faz sentir esta ridente idéia: canção e lei eram uma mesma palavra entre os
               helenos.


               A modinha é o instinto bárbaro de independência e de maravilha no homem. Louva aos deuses,
               incita à guerra, canta a mesa, chora desejos de carne, e – ó coisa admirável! – foi ela que trouxe
               desde  Atenas  para  os  superficiais  prazeres  de  civilização  esses  sons  frívolos  que  nos  cafés-
               cantantes  nos  fazem  tanto  bem,  foi  ela  que  modificou  a  onomatopéia  selvagem,  no  delicioso
               tralalá.


               Quando a musa anônima inventou o tralalá, jocunda insignificância, mais vasta, mais profunda que
               um etc. na conversa de um embaixador, a musa assegurara para todo o sempre a imortalidade, e
               vémo-la  zurzir  os  césares  em  Roma  e  bajulá-los  também;  vêmo-la  em  plena Idade Média
               esconder-se nas pedras das catedrais e florir sob as espadas nuas dos cavaleiros; vêmo-la irradiar
               pelo universo início de literaturas, semente de grandes idéias, e nos tempos modernos fazer-se
               clava destruidora, bomba revolucionária, impondo a fórmula – igualdade, liberdade, fraternidade.


               A canção é a sobrevivência alegre de um gênero comprido e lúgubre chamado poema épico,
               que já  entre  nós  não  tem  cultores;  a musa  do  povo  tem esse aspecto  infinito  –  é o  contínuo
               epítomeda história.


               Cada nação moderna pode esquissar séculos da sua vida mental, política  e artística, apenas com
               uma  coleção  de  cantigas.  A  Revolução  Francesa  que  todos  teimam  em  considerar  a base do
               mundo começou por modas satírícas contra Luís XIV, Richelieu e Mazarino, acentuou-se contra
               os favoritos de Luís XV, tornou-se brasa, látego, fogo, vergasta quando Maria Antonieta enfeitara
               carneirinhos nos prados cuidados, explodiu em quadras e estribilhos que lembram o embate de
               cargas de baionetas e afinal concluiu numa canção guerreira, a Marselhesa, que não se ouve sem
               se sentir a irresistível emoção do triunfo, da vitória, da apoteose.
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