Page 129 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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e parece ter mil. É dolorosamente irreal. Está condenada por crime de infanticídio. Matou o próprio
filho ao nascer, mas antes devia ter matado outros, como matará os futuros com o seu olhar de
círio perpetuamente ardendo na negridão das olheiras. Ao vê-la, lembra-se a gente das teorias
dos criminalistas passados e principalmente das idéias de Maudsley sobre o crime e a loucura.
– Como te chamas?
– Olívia.
– Você não gosta das crianças?
Um gesto negativo de cabeça.
– Antes já procurara tomar remédios para abortar, não?
É uma pergunta sem razão de ser. A menina curva a cabeça e desata a chorar. Tudo quanto se
lhe perguntar sobre o seu horror à maternidade, Olívia é incapaz de negar. Não deve estar nessa
enfermaria de detenção, mas num dos pátios do hospício. E, encolhida, com os cabelos esparsos
nos travesseiros, a pele ressequida como um pergaminho muito tempo esfregado por óleos
bárbaros, essa infanticida de quinze anos arreganha a face num ricto de angústia como um
cadáver de asteca ao ressurgir à face da terra.
Neste momento, porém, houve um rebuliço. Chegavam os presos da colônia de Dois Rios à
disposição do chefe. Fora ouviam-se os rugidos de um negro abjeto, o Bronze, enleado numa
camisola-de-força, esperneando, espumando. Dois outros adolescentes bem dispostos, de
chinelos novos que sorriam perfeitamente contentes com a sorte, perfilavam-se ao longe entre
os guardas.
Não tivemos tempo de chegar à janela. Pelo corredor vinham vindo três mulheres. Traziam toda
a roupa de zuarte e um lenço cobrindo o crânio pelado. A primeira era magra, magríssima, tossindo
a cada instante, com as mãos em cruz sobre o peito. De vez em quando parava e a sua face
exprimia a horrenda e inexprimível dor de uma agonia sem fim. A segunda, apagada, com os
braços abertos, parecia não sentir mais as pernas. A última, com uma face de burguesa honesta
na miséria, tinha um ventre enorme, um ventre hidrópico, um ventre colossal. Os guardas iam-nas
tocando.
– Eia! pra diante! eia!
As duas primeiras passaram sem ver, com o olhar insensível. A última parou.
– Não posso mais. Vim para fazer operação. Oh! o meu martírio! De qualquer forma, sr. guarda,
eu morro, mas deixe-me ao menos morrer quando chegar a hora definitiva.