Page 135 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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ser notável. Quando foi número de music-hall, perdeu a tramontana e andava de smoking azul e
chapéu de seda. A sua fantasia foi mais longe: chegou a publicar um livro intitulado Trovador da
Malandragem, e esse Trovador tem um prefácio cheio de cólera contra pessoas que duvidam da
autoria das suas obras.
"Por que duvidais, diz ele, isto é, não acreditais quando aparece qualquer choro, qualquer
composição minha que cai no goto do público e é decorada, por toda a gente e em toda a parte,
desde nobres salões até pelas esquinas nas horas mortas da noite?"
Ninguém ouviu os choros do Sr. Eduardo nos salões fidalgos mas o Sr. Eduardo tem essa
convicção definitiva, além de muitas outras. Depois de cantar algumas intimidades da sua vida,
chegou mesmo, num lundu intitulado O crioulo, a desvendar o mistério de uma senhora
loucamente apaixonada pela sua voz. No final do negócio a dama murmura:
Diga-me ao menos
Como se chama
E ele, complacente:
Sou o crioulo
Dudu das Neves
Dudu, entretanto canta apenas as suas obras. Há um outro sujeito, chamado Baiano, que sabe de
cor mais de mil modinhas, e para o qual trabalham a oito mil réis por número, meia dúzia de poetas
que nunca saíram nos suplementos dominicais dos jornais. E se baiano tem essa prodigiosa
memória, o Sr. Catulo, último trovador velho-gênero, é o esteta da trova popular. Vê- lo recitar O
Poeta e a Fidalga, com um copo de chopp na mão, é um desses espetáculos de brasserie
inesquecível. Catulo emaranhou-se no dogma da moda, corrigiu os versos de tudo quanto era
quadra, estudou Bellini, Donnizetti, Verdi, adaptou os nossos versos a trechos de óperas e,
finalmente, compôs traduções livres de Leconte de Lisle para serem recitadas ao piano! Há no
prefácio da Lira dos Salões, o livro em que se encontra Leconte no pelourinho do recitativo, a
estética fundamental da modinha:
"Julgo difícil, diz ele, e escabroso o trabalho de escrever poesias para adaptar a músicas que já
preexistem de há muito, e com extrema razão quando essas composições musicais foram escritas
por quem nunca presumiu que elas fossem sacrificadas, isto é, cantadas com letras."
"Canto valsas, schottischs, mazurcas, polcas, romances, árias de óperas, e já cheguei ao
esquisitismo de cantar até uma quadrilha inteira."
E mais adiante, no mesmo tom, depois dessa coisa espantosa e pernóstica:
"Vós me pedis, suponde, que eu faça a poesia para certa música. Crede que eu, imediatamente,
sem mais reflexão, empunhe a pluma e a vaze no papel? Não. Há algumas dessas músicas que
me fazem levar horas inteiras a interpretar-lhes os sentimentos, os queixumes, as mágoas de que
sofrem os seus autores."