Page 132 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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As artes são por excelência ciências de luxo. A modinha, a cançoneta, o verso cantado não é
ciência, não é arte pela sua natureza anônima, defeituosa e manca: é como a voz da cidade, como
a expressão de justiceira de uma entidade a que emprestamos a nossa vida – colossal
agrupamento, a formidável aglomeração, a urbs, é uma necessidade de alma urbana e
espontânea vibração da calçada. Se quiserdes saber o que pensou o boulevard durante vinte
anos, comprai esses papeluchos de um sou que os camelots vendem. Há desde a história do
Panamá à questão dos cultos, desde a renúncia de Perier até a condenação de Sarah Bernhardt.
E se os gregos asseguravam que a poesia é um delírio inspirado pelas musas às almas simples e
virgens, se o Evangelho afirma pretender o céu às crianças e aos que lhes parecem – por que
teimaremos nós em dizer que a poesia preferiu o nosso cérebro ensanduichado em literaturas
estrangeiras à alma simples do povo ignorante? Os poetas da calçada são as flores de todo o ano
da cidade, são a sua graça anônima, a sua coquetterie, a sua vaidade anônima e sua sagração –
porque afinal o próprio Platão, que julgava Homero um envenenador público, considerava o poeta
um ser leve, alado e sagrado.
É exatamente assim a nossa musa urbana. Dispépticos intelectuais, vêmo-la tristemente à
margem da poesia. Que idade tem ela? Tem séculos e parece nascida ontem, passou por todas
as vicissitudes e chalra como uma criança. Conhecem-lhe a origem? Pois decerto.
A musa renovou aqui o símbolo do filho pródigo. Teve pais notáveis, princípios sérios, e viveu no
palácio dos reis, freqüentou os gênios e os salões fidalgos. Mas um belo dia, sem dizer água- vai,
foi-se, degenerou, pintou o sete, embebedou-se, vive pelas alfurjas e chombergas, afina o violão
em sítios escusos, e – ó acontecimento! – está forte, está sacudida, é a única musa que não tem
cefaléias e não sofre de artritismo. Quem a criou? Gregório de Matos ao norte fez o lundu; S. Paulo
ao sul o viradinho. A fusão dos dois é a alma do Brasil. Logo que a teve assim com todos seus
encantos, Caldas Barbosa, mulato arcadiano, levou-a para Portugal.
A modinha entrou no paço dos reis, ensandeceu os peraltas e as sécias da decadência rocalhante
do XIX século lusitano. As damas fechavam-se nos quartos e respiravam as endechas com o
prazer de uma ação capitosa; os homens eram convidados para tais atos como hoje se convida
para os five o’c/ock onde há flirt. O versinho ingênuo e babado delirava os baldaquins de trono
real e a gracilidade das grandes damas. E como resistir? Como lhe poderiam resistir meridionais
da terra do fado? A Modinha era o soluço, era o gemido, era o riso, era o suspiro ardente da selva
ardente. Nem Lord Beckford, um inglês frio e fatalmente de gelo, como todos os ingleses, pode
resistir, e esquenta e derrete. É dele a mais fogosa descrição de machucado da nossa canção:
"Quem nunca ouviu", diz, "este original gênero de música, ignorará para sempre as mais eiticeiras
f
melodias que têm existido desde o tempo dos sibaritas. Consistem em lânguidos e interrompidos
compassos, como se faltasse o fôlego por excesso de enlevo e a alma anelasse se unir a outra
alma idêntica de algum objeto querido."
"Uma ou duas horas correram quase ímperceptivelmente no deleitoso delírio que aquelas notas
de sereia inspiravam, e não foi sem mágoa que eu vi a companhia dispersa e o encanto desfeito."
Depois os poetas que sabiam ler continuaram a dar o seu prestígio às sibaríticas melodias que
punham Lord Beckford em delírio e em deleite, e nós vemos toda a escola romântica tomar
inconscientemente na maioria dos seus versos a feição melódica, o metro modinheiro; vemos