Page 133 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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aquele pernóstico elegante, o Magalhães dos Suspiros Poéticos, escrever em Roma versos que
estão pedindo cavaquinho, gaforinha e unha grande; vemos Castro Alves criar para esse gênero
canções de uma frescura eterna como a Tirana:
Minha Maria é bonita
Tão bonita assim não há
O beija-flor quando passa
Julga ver o manacá
Minha Maria é morena
Como as tardes de verão
Tem as tranças da palmeira
Quando sopra a viração.
E Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias e Bittencourt da Silva, Ezequiel, Melo Morais, a leva dos
ex-acadêmicos atuais conselheiros, e esse estranho Álvares de Azevedo, o único genial do bando
romântico, o único predestinado como os grandes vates, o único que no choro de praxe
desamargurados de estilo tinha o soluço presciente de uma tumba a abrir-se, o único que
conservava no torvelinho das paixões uma alma de rosa cujo perfume desejava o céu, o único que
hoje, amanhã, ninguém lerá sem sentir o soluço, o travo da morte, o ai! das agonias e a tristeza
que nos causa o desaparecer de um astro, o murchar de uma flor, o tombar de um pássaro cujo
breve cantar não passou de uma alegria em torno do próprio ninho...
Ainda um instante, ligando à sua dualidade, arma de dois gumes, sátira e lirismo, a musa foi a
senhora capaz de entrar num salão e se conservar num ambiente respeitável. A sua paixão porém
levou-a a acompanhar Laurindo Rabelo a maus lugares, o Laurindo cigano dos repentes, cantador
emérito, de quem se tem dito tanto mal, tanto bem e tanta mentira. E de repente quando se falou
num salão de modinhas, as damas coraram e os de família mudaram de conversa, arredando esse
assunto fescenino, imoral, prejudicial à pureza do lar. A modinha dera na gandaia, a modinha era
vagabunda, a modinha descera à ralé, integralmente anônima, desprezada. Melo Morais empresta
a sua companhia de homem sério a tamanha bambochata, precipita-se nas vielas e bodegas para
apanhar a história dos mais célebres e mais notáveis poetas, que ninguém conhece, e traz-nos
naquele seu estilo, tão seu, tão complexo, tão bizarro, esses curiosos períodos:
"No Olimpo das serenatas do tempo, percebemos neste momento desfilar espectralmente,
orvalhados dos relentos daquelas noites, vultos de transcendente nomeada, excelentes rapazes
que passaram neste mundo para deixar lampejos fugazes e duradouras recordações. E foram eles
pelo crisma popular conhecidos por Zuzu Cavaquinho, Lulu do Saco, Manezinho da Cadeia Nova
ou Manezinho da Guitarra, Zé Menino, Vieira Barbeiro, ainda o Caladinho, o lnácio Ferreira, o
Clementino Lisboa, o Rangel, o Saturnino, o Luisinho, Domingos dos Reis, que lá desceram para
os túmulos, que ora volteio, agitando os ciprestes que os resguardam sob o céu sem eco das
necrópoles."
A modinha tinha por cultores o Manezinho do Saco e o Zuzu Cavaquinho. Pobre modinha!
Hoje, vinte ou trinta anos depois, é ainda mais abundante, mais popular e mais estranha ao nosso
paladar de estética elevada. Cada cançoneta tem uma porção de pais. A musa urbana, a musa
das ruas, que ri dos grandes fatos e canta os seus amores pelas esquinas, nas noites de luar, a
musa é a de todo um milhão de indivíduos. Nessas quadras mancas vivem o patriotismo, a fé, a
pilhéria e o desejo da populaça, desses versos falhos faz-se a sinfonia da cidade, proteiforme e
sentimental. A modinha e a cançoneta nascem de um balanço de rede, de uma notícia de jornal,
de fato do dia – assunto geral –, do namoro e da noite – assunto particular. Se em Paris é a
rapsódia da miséria e a vergasta irônica, no Rio é a história viva do carioca, a