Page 128 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Cá comigo é nove. Não gosto de presepadas. Ele era um rodelista. Quando a gente gosta de
um homem, gosta mesmo, nem que bata o trinta e um.
Falavam uma língua imprevista e curiosa, cuspinhando; e olhando as pobres coitadas, não sabia
eu bem se falava a mulheres velhas ou a mulheres novas, de tal forma aquelas faces e aqueles
corpos estavam arruinados. Perguntei a uma pardinha cujos dentes eram brancos e que devia Ter
sido bonita:
– Como se chama?
– Quantos anos tem?
– Francisca Maria.
– Tenho vinte.
E estava havia cinco naquela vida de horror. E assim a Carmem da Rua Morais e Vale, e assim
a Carmelina com uma navalhada na face, vibrada pela rival enquanto dormia, e assim a velha
Rosa Maria à espera da liberdade apenas para continuar o seu fadário e voltar à detenção.
Todas estão tatuadas, tatuadas nos seios, ombros, tatuadas nos braços, nas pernas, no ventre,
tatuadas nas mãos, algumas até tatuadas na testa. Esses riscos azuis e essas manchas negras
dão-lhes um aspecto bárbaro, um ar selvagem. Nenhuma decerto tem mais família ou amizades
duradouras. A tatuagem para os seus pobres corações apodrecidos é como a exteriorização da
saudade. Muitas têm, entre espadas, cristos, sereias, peixes, coroas imperiais, o nome dos que
lhes deram o ser, o nome dos irmãos, o dos filhos perdidos e dos amantes que se foram: muitas,
nas horas de solidão, têm na própria pele a recordação da eterna dor.
Cavalhada da luxúria, correndo nos recantos da cidade ao lado da morte e do assassinato,
destinada aos fins trágicos da miséria, da sífilis ou do ciúme feroz, os seus próprios corpos são
como o perpétuo símbolo das suas adorações, os altares onde se confundem todos os
sentimentos. A cabocla Carmelina, uma das mais tatuadas, tem de tudo no corpo e até as falanges
formam com iniciais o nome do irmão. Os braços, ela os dedicou ao amor. Há nomes e nomes,
uns por cima dos outros, alguns apenas em iniciais, outros por extenso. Examinando esses dois
braços de Vênus asquerosa, que com o mesmo delírio e a mesma alma apertaram na chama da
paixão apaixonados diversos, o guarda perguntou, como quem quer decifrar um enigma:
– E qual destes é querido agora?
Carmelina esticou o braço esquerdo, e todos nós lemos, enquanto ela sorria, o nome de Narciso,
com uma cedilha de mais por baixo do c. A criatura amava um Narciso, e decerto naquele momento
aos seus olhos surgia a imagem desse seu deus temporário.
Eu porém já me nauseara, e Antônio Barros, chefe dos guardas, sempre solícito, levou-me à
enfermaria, onde havia apenas três doentes –a Herculana assassina, a negrinha Gabriela do
Pontes e uma pequena, feia, magra, olheirenta, espapaçada na cama como uma das múmias
americanas que o museu guarda na sua seção de etnografia. Essa criaturinha tem quinze anos