Page 125 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Esses  pobres  entes  são  o  normal.  Há,  entretanto,  verdadeiras  crises  místicas  como  a  desse
               convulsivo tratante Afonso Coelho. Afonso escreve diariamente cartas fervorosas de regeneração;
               reza, manda epístolas insultuosas a outros detentos, verberando-os porque a sua fé não é forte.
               Em todas as cartas há erros de ortografia lamentáveis e um sopro de milagre. Ao mesmo tempo,
               porém, Afonso Coelho esgaravata no pobre cérebro o meio  de fugir. Arranja imas e corta varões
                                                                                       l
               de ferro. O administrador, atento, quando o trabalho está pronto, muda-o de cubículo. Vai ao
               tribunal e, em caminho, ainda na detenção, atira-se como um tigre, tentando escalar um portão.
               Os guardas têm que o puxar pelas pernas e lutar com ele, braço a braço. Traça planos de fuga,
               escreve  indicações  a  amigos  para  abrirem  portas  num  muro,  combina  fugas  estranhas.  O
               administrador  guarda  uma  porção  destas  cartas,  interceptadas  por  sua  ordem.  Ultimamente,
               visitado por um jornalista a quem dá a honra de falar, depois de discutir direitos, de meter os pés
               pelas mãos com a sua vaidosa mania de querer ser inteligente, acabou dizendo:


               – Qual, meu amigo, já estou muito conhecido aqui. Se sair, embarco para a Europa. Lá o meio é
               maior.


               E, cheio de doçura, enquanto desesperadamente a sua esperteza se arremete contra as grades
               preventivas, esse mesmo homem sonha com a Virgem, bate nos peitos e faz crer aos ingênuos
               ou aos interessados reformadores que é um santo no caminho de Damasco.


               A terceira idéia quase obsessiva é a imprensa. Há os que têm medo de desprezá-la, há os que
               fingem desprezá-la, há os que a esperam aflitos. O jornal é a história diária da outra vida, cheia
               de sol e de liberdade; é o meio pelo qual sabem da prisão dos inimigos, do que pensa o mundo
               a  seu  respeito.  Não  há  cubículo  sem  jornais.  Um  reporter  é  para  essa  gente  inferior  o  poder
               independente, uma necessidade como a monarquia e o céu. Anunciar um reporter nas galerias
               é agitar loucamente os presos. Uns esticam papéis, provando inocência; outros bradam que as
               locais de jornais estavam erradas, outros escondem-se, receando ser  conhecidos,  e é um alarido
               de ronda infernal, uma ânsia de olhos, de clamores, de miséria... Os desordeiros acusados de
               ferimentos  graves,  com  muitas  mortes  na  consciência  são,  por  sua  natureza,  vingativos  e
               conhecem bem os reporters. E, entretanto, apesar das notícias cruéis, nunca nenhum se atreveu
               a tentar uma agressão. José do Senado pede:


               – É com a imprensa que eu conto. O senhor foi cruel, porque não sabia...


               Carlito teve, nesse dia, uma frase completa:


               – Eu sei que foi o senhor o autor daquela descompostura contra mim, no jornal. Mas também
               estou vingado. Se não fosse eu, o sr. não escrevia tanto.


               Os outros rojam, como as beatas nos altares dos santos impassíveis.


               – Não fale de mim, seu reporter; deixe o meu nome sossegado, não fale!


               E  no  dia  seguinte  percorrem,  loucos,  a  folha  para  ver  negrejar  no  papel  poderoso  a  sua
               celebridade.
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