Page 123 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Às vezes, numa volta pelo pátio, a conversar com Obed Cardoso, eu via o elegante  Dr. Saturnino
               de Matos passar, como se fosse dar milho às pombas. E, se depois de admirar o Dr. Saturníno
               apontavam-me,  enfiado  no  zuarte  do  estabelecimento,  com  o  número  de  metal  à  cinta,  um
               modesto gatuno ou um simples assassino cujo comportamento exemplar os transformava em
               serventes, eu deixava o gentil Obed e gozava o calão dessas interessantes flores de patifaria.


               Há na detenção reincidentes exemplares e casos de psicologia curiosíssimos. O  Sargento da
               Meia-Noite,  ladrão  temível,  uma  espécie  de  transformista  da  infâmia,  é  passar  os  umbrais do
               jardim onde descansa o crime, para se tornar um cordeiro artista, uma espécie  de  frade medievo.
               Recolhido ao cubículo, inaugura logo a sua arte de miolo de pão. Faz flores, bonecos, santos,
               animais;  pinta-os,  remira-os,  manda-os  vender.  Parece  regenerado.  Todos  sabem,  entretanto,
               que, uma vez livre, o Sargento não resistira à tentação de invadir a casa alheia. Os "punguistas",
               inofensivos lá dentro, tão certos estão de continuar a roubar que o Braga Bexiga me dizia:


               – No dia em que sair, tomo logo um bonde e limpo a primeira carteira.


               – Mas é difícil.


               –  Para quem conhece a arte não há dificuldades. Eu trabalho desde criança e tive como professor
               o Zezinho.


               – Vamos a ver esse trabalho.


                         a
               – Se V. S  me dá licença, eu vou tirar duas notas de duzentos que o sr. Obed pôs agora no
               bolso da calça.


               Na outra extremidade da sala, Obed, sem que ninguém desse por isso, acabara de contar o seu
               dinheiro e de metê-lo no bolso da calça. Bexiga, trêmulo, com os olhinhos piscos, continuava ali
               a  exercitar  as  suas  criminosas  observações.  Capoeiras,  assassinos,  como  Carlito  e  outros,
               reincidentes, condenados a trinta anos, exprimem a certeza de que continuarão lá fora a vida
               anterior. Carlito, mesmo, disse-me um dia:


               – Deus aperta, mas não enforca!


               Máxima muito mais profunda que quantas escritas pelo desfastio erudito do defunto Marquês de
               Maricá.


               Os cientistas da penitenciária veriam nisso um problema a resolver, o problema de emendar o
               criminoso. Um, a quem eu contava o desplante dos recidivos, assegurou-me:


               – É preciso aplicar o método inglês, as sentenças cumulativas, sistema de penas progressivas
               cuja duração é calculada pelo quociente das reincidências. Um preso condenado por ladroeira,
               se entrar outra vez pelo mesmo crime, tem a pena duplicada; se entrar terceira, triplicada, e assim
               por diante. Isto acabaria com a falha do código, o broquel de defesa dos gatunos, que nos
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