Page 118 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Um sino pôs-se a tocar. Era o fim da visita. Os sons vibravam, duros, como uma ordem. Há
sinos que choram, sinos que cantam, sinos que são tristes; há sinos feitos para dobrar a finados,
como os há para cantar missas em ações de graça. Aquele sino era um aguilhão. O pátio
esvaziava. A tropa partia, tropa desoladora, amiga do vício e do crime.
Foi então que eu vi aparecer, carregada de embrulhos, com a coifa branca a ondular as duas
grandes asas, a figura de bondade da irmã Paula. O guarda tirara o boné, cheio de um carinhoso
respeito. Os malandros e os desgraçados, ainda à porta, tinham nos olhos uma expressão de
timidez e de alegria.
– Bonjour, meu filho, fez a irmã com um gesto cansado. O Sr. administrador? O guarda disse
qualquer coisa, comovido. Ela arrumou embrulhos, enxugou as mãos, subiu as escadas da
secretaria. A sua coifa alva parecia uma grande borboleta branca.
– É a única visita que consola os presos, é a única que eles respeitam, murmurava o guarda.
Quando ela fala, tão simples e tão meiga, até as pedras parece quererem-lhe bem. Quando Jesus
passou por este mundo, devia ter sido assim bom para todos os desgraçados.
De novo a coifa apareceu, borboleta de esperança adejando as grandes asas brancas e, como se
fizesse a obra mais natural deste mundo, a irmã Paula disse:
– Vamos ver os desgraçadinhos. Trago-lhes hoje umas coisas. O Sr. administrador é muito bom,
permite.
E assim, tocado pela sua presença, a mim me pareceu que o doloroso canto do jardim do crime
se transformava no horto das rosas de que fala S. Tomás de Kempis...
Versos de Presos
O criminoso é um homem como outro qualquer. No primeiro momento, sob o pavor dos grandes
muros de pedra, com um guarda que nos mostra os indivíduos como se mostrasse as feras de um
domador, a impressão é esmagadora. Vê-se o crime, a ação tremenda ou infame; não se vê o
homem sem o movimento anormal, que pôs à margem da vida. Quando a gente se habitua a vê-
los e a falar-lhes todo o dia, o terror desaparece. Há sempre dois homens em cada detento – o
que cometeu o crime e o atual, o preso. Os atuais são perfeitamente humanos, Só uma variedade
da espécie causa sempre náuseas; os ladrões, os "punguistas", os "escrunchantes", porque
dissimulam, mentem e têm, constante no riso e na palavra, um travo de cinismo. Os outros não.
Conversam, contam fatos e pilhérias, arranjam o pretexto de ir lavar a roupa para apanhar um
pouco de sol no lavadouro, são homens capazes até de sentimentos amáveis.
Ora, este país é essencialmente poético. Não há cidadão, mesmo maluco, que não tenha feito
versos. Fazer versos é ter uma qualidade amável. Na detenção, abundam os bardos, os
trovadores, os repentistas e os inspirados. São quase todos brasileiros ou portugueses, criados
na malandragem da Saúde. A média poética é forte. Desordeiros perigosos, assassinos vulgares
compõem quadras ardentes, e há poetas de todos os gêneros, desde os plagiários até os
incompreensíveis. Não sei se a timidez ou outra razão mais obscura os faz assinar as composições
poéticas apenas com as iniciais e quando muito com as iniciais precedidas do nome de batismo.