Page 113 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Vive naquela jaula o crime multiforme. O guarda aponta o Cecílio Orbano Reis, assassino, na
Saúde, de uma mulher que lhe resistira; o João Dedone, facínora cínico; matadores ocasionais,
como Joaquim Santana Araújo, quase demente; o Mirandinha, mulato, passador de moeda
falsa, se faz passar por advogado; o Barãozinho, gatuno; Bouças Passos, ladrão assassino,
Salvador Machado, o íntimo criado da Tina Tatti; negros capangas com as bocas sujas, que
resistem à prisão com fúria; desordeiros temíveis como o Eduardinho da Saúde, retorcendo os
bigodes, cheio de langores; sátiros moços e velhos violadores; o célebre Pitoca, que tem sessenta
e seis entradas; rapazes estelionatários e até desvairados, como João Manuel Soares, acusado
de tentativa de morte na pessoa do Sr. Cantuária, que leva, numa agitação perpétua, a dizer:
– Eu sei, foi o bicho... foi por causa do bicho, hein? Está claro!
Dois baixos-relevos alucinadores, dois frisos da história do crime de uma cidade, ora alegres,
ora sinistros, como se fossem nascidos da colaboração macabra de um Forain e de um Goya, dois
grandes painéis a gotejar sangue, treva, pus, onde perpassam, com um aspecto de bichos
lendários, os estupradores de duas crianças, de sete e de dez anos.
E em meio do charco, fatalmente destinada a desaparecer, a inocência, atirada ali pela incúria das
autoridades, floresce.
Encontro ao lado de respeitáveis assassinos, de gatunos conhecidos, na tropa lamentável dos
recidivos, crianças ingênuas, rapazes do comércio, vendedores de jornais, uma enorme
quantidade de seres que o desleixo das pretorias torna criminosos. Quase todos estão inclusos,
ou no artigo 393 (crime de vadiagem), ou no 313 (ofensas físicas). Os primeiros não podem ficar
presos mais de trinta dias, os segundos, sendo menores, mais de sete meses. Os processos,
porém, não dão custas, e as pretorias deixam dormir em paz a formação da culpa, enquanto na
indolência dos cubículos, no contacto do crime, rapazes, dias antes honestos, fazem o mais
completo curso de delitos e infâmias de que há memória. Chega a revoltar a inconsciência com
que a sociedade esmaga as criaturas desamparadas. Nessa enorme galeria, onde uma eterna luz
lívida espalha um vago horror, vejo caixeiros portugueses com o lápis atrás da orelha, os olhos
cheios de angústia; italianos vendedores de jornais, encolhidos; garçons de restaurant; operários,
entre as caras cínicas dos pivettes reincidentes e os porqueiros do vício que são os chefes dos
cubículos. Todos invariavelmente têm uma frase dolorosa:
– É a primeira vez que eu entro aqui!
E apelam para os guardas, sôfregos, interrogam os outros, trazem o testemunho dos chefes.
Por que estão presos? José, por exemplo, deu com uma correia na mão de um filho do cabo de
um delegado; Pedro e Joaquim, ao saírem do café onde estão empregados, discutiram um pouco
mais alto; Antônio atirou uma tapona à cara de Jorge. Há na nossa sociedade moços valentes,
cujo sport preferido é provocar desordens: diariamente, senhores respeitáveis atacam- se a
sopapo; jornalistas velho-gênero ameaçam de vez em quando pelas gazetas, falando de chicote
e de pau a propósito de problemas sociais ou estéticos, inteiramente opostos a esses aviltantes
instrumentos de razão bárbara. Nem os moços valentes, nem os senhores respeitáveis, nem os
jornalistas vão sequer à delegacia.
Os desprotegidos da sorte, trabalhadores humildes, entram para a detenção com razões ainda
menos fundadas.