Page 117 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– E tu, João?


               – As voltas com o Zé-Maria. Nem você imagina como eu ando. Estou só esperando que você saia,
               para tirar um pensamento da cabeça...


               E as suas mãos agarravam a mão da outra, num gesto de medo e de paixão.


               O clamor continuava, fragorava como um oceano que se debatesse contra os altos muros brancos.
               O administrador já mandara ordem para dar fim à visita. Ainda havia os serventes e os abastados.
               De vez em quando, destoando dos casacos-sacos dos malandros, entrava uma sobrecasaca,
               algum advogado de porta de xadrez, a farejar a diária de petições de habeas- corpus, lambiscando
               delicadezas aos guardas.


               – Há alguns desses sujeitos, dizem-me, que até já estiveram presos. E conheço um que, tendo
               contratado um habeas-corpus por trinta mil réis, não queria que o administrador soltasse o preso
               enquanto não o tivesse pago dessa importância.


               A  nossa  atenção  voltou-se,  porém,  para  uma  austera  senhora  que  descia  da  secretaria
               gravemente, com um embrulho debaixo do braço.


               – Não conhece? perguntou-me um dos guardas. É missionária protestante. Vem, naturalmente,
               pedir ao sr. capitão Meira Lima para falar aos presos. Antigamente vinha mais vezes. Ah! o senhor
               nem  imagina  o  que  os  detentos  faziam  com  ela.  Eram  troças,  pilhérias,  arremedavam-na  na
               bochecha, diziam-lhe desaforos. Por último, sopravam-lhe nos olhos pimenta em pó, através das
               grades  do  cubículo.  Ela  continuou,  impassível,  a  distribuir  folhetos  da  religião,  que  o  pessoal
               transforma em baralhos.


               Tenho aqui um para o senhor. Venha cá. É preciso que ela não veja.


               Vamos para o saguão. O guarda desdobra por trás da jarra Tiradentes, de Benedito Machado, um
               embrulho, e eu vejo valetes, ases e damas admiravelmente pintados em pedaços dos livros de
               edificação moral. Há mesmo um rei de paus que tem nas costas S. Paulo. E no pátio, a inglesa,
               na  sua  obra  regeneradora,  espera  com  calma  que  o  administrador  consinta  em  mais  uma
               distribuição de folhetos, para o fabrico de futuros baralhos!


               O clamor das galerias parecia diminuir, enquanto à porta do pátio havia o mesmo atropelo de
               pessoas, agora querendo sair. Os protestos prorrompiam entre frases de cólera  surda e frases de
               deboche. Uma rapariga com o filhinho nos braços bradava: – Não volto mais! Não falei ao José. É
               impossível chegar perto da grade! – Contente-se comigo, dona! – A mulherzinha vinha com sede!
               – Ó Antônio, vamos tomar uma lambada!  – Ih! menino, já quebrei água hoje como quê! E as vozes
               alçavam-se,  cruzavam-se;  faziam  naquela  porta,  como  a  ornamentação  da  raiva  e  da  sem-
               vergonhice um baixo-relevo vivo de entrada de penitenciária, enquanto, suando, bufando, com os
               cartões na mão, aquela gente – mulatos, pretos, italianos, portugueses, fúfias e rufiões, tristes
               mulheres e trabalhadores de fato endomingado – dava cotoveladas e empurrões, no desejo cada
               qual de sair em primeiro lugar.
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