Page 116 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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À porta da detenção, o movimento torna-se cada vez mais difícil e o rumor cresce. Vista de fora,
               na  semi-sombra,  a  multidão  tem  um  aspecto  estranho  e  uniforme,  parece  um  quadro
               violentamente espatulado pela mesma mão delirante. Os olhos raiados de sangue, alegres ou
               chorosos,  têm  um mesmo  desejo  –  entrar;  os  corpos,  corpos  de  mulheres,  frágeis  corpos  de
               crianças, corpos musculosos de homens, uma só vontade – forçar a entrada; e todos os gestos,
               lentos, dificultosos, presos em encontrões de rancor, exprimem o mesmo anelo, que é o de entrar.


               Há pragas, frases violentas, mãos que se agarram às roupas de outros, interjeições furiosas; e
               de dentro, do mistério do pátio da prisão, vem um clamor formidável e indistinto, que aquece e
               fustiga ainda mais o desejo de entrar e de ver. O porteiro, um senhor velho de cavaignac branco,
               distribui os cartões irritado e a suar.


               – Não deixem passar sem cartão! Não entra ninguém sem cartão!


               E  os  cartões,  sebentos,  passam  das  mãos  dos  guardas  para  mãos  sôfregas  dos  visitantes,
               enquanto na porta de ferro, desesperadamente os que os obtiveram antes  procuram  entrar todos
               a um tempo. Um cheiro especial, misto de fartum de negros e de perfumes baratos, de suores de
               mulheres e de roupa suja, enerva, dá-nos visões de pesadelo, crispações de raiva.


               Dentro, o pátio está limpo de serventes. Das janelas da secretaria, alguns funcionários deitam
               olhares distraídos. Duas filas de criaturas parece ligarem a porta de ferro aos dois portões das
               galerias. E nessas galerias o espetáculo é medonho. Dias antes, os presos contam as horas, à
               espera desse instante. Uns querem matar saudades, outros contam com os  amigos  para mandar
               vender as suas obras – flores de pão, couraçados de pau; outros escreveram toda a noite cartas
               anônimas ao chefe de polícia, denunciando companheiros ou inimigos, e anseiam por alguém para
               as pôr no correio; e todos, absolutamente todos, acicateados pelo egoísmo, esperam os presentes,
               o fumo, o dinheiro, as prendas, como uma obrigação dos que os vão ver. Os dois portões fecham-
               se antes de se abrirem os cubículos, e no corredor da grande galeria é um alarido, um desespero
               de  jaula,  com  gritos,  imprecações  gargalhadas,  perguntas,  risos,  o  pandemônio  das  vozes,
               enquanto, como uma matilha de lobos, acuada, agarrando-se aos grossos varões, uns por cima
               outros, os assassinos, os incendiários, os estupradores, os desordeiros e os inocentes obrigados
               à infâmia numa confusão, arquejam na ânsia da liberdade. De fora, os visitantes não chegam às
               vezes a se fazer compreender, esmagados uns nos outros, rritados, sem poder apertar a mão dos
                                                                      i
               amigos. São em geral homens de lenço de seda preta e chapéu mole, adolescentes arrastando
               as chinelas, mulheres perdidas, velhos trêmulos. No alarido, ouvem-se frases breves – Ó Juca,
               trouxeste os cigarros? – Ai, meu filho, que saudades do nosso tempo de cubículo! – Sabes quem
               foi preso ontem? – Vê se me arranjas um habeas com o Benjamim! – Estou aqui já há um mês e
               três dias! Fala por mim a seu Irineu! Algumas dessas palavras são vociferadas de longe. Os que
               tiveram a felicidade de chegar primeiro unem as mãos entre os ferros, falam devagar. Há amantes
               trêmulas, vendo o ciúme nos olhos dos detentos, há pobres esposas, há crianças e há velhos
               respeitáveis  com  a  face  triste,  todos  os  sentimentos  escachoando,  borbulhando,  barulhando
               naquele vórtice de desgraça.


               Na outra galeria estão as mulheres. Essas só são visitadas por homens, os mesmos sujeitos de
               lencinho preto e calça balão, que às vezes visitam num só dia quatro e cinco amigos na detenção.
               As conversas são mais calmas. Algumas estão lá por causa dos que as visitam, por ciúme e
               pancadas. Têm quase todas esse sorriso estereotipado de resignação e amargura, dos infelizes
               que ainda não mediram a extensão da própria infâmia. Do outro  lado,  os homens parece estarem
               ali por obrigação. Só um eu vi, menino ainda, magro, tísico, com um olho afundado em pus, que
               segurava, como para se aquecer, a mão de uma pequena mulatinha. Ela conversava com outro,
               sem lhe dar atenção. Afinal, teve um sorriso de piedade.
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