Page 112 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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no gesto de cada uma das vítimas do amor, o desejo de guardar o perfil das suas destruidoras.
               Oh! esses seres, que Schopenhauer denominava animais de cabelos compridos e idéias curtas,
               que formidável obra de destruição cometem! São a torrente a que ninguém pode resistir, a força
               dominadora da maldade, os molochs da alegria. As gerações futuras, livres dos nossos velhos
               deuses,  devem,  para  que  a  harmonia  as  guie,  levantar  nas  cidades  um  altar  votivo  onde  os
               adolescentes possam sacrificar, todas as manhãs à ira de Vênus sanguissedenta.


               Mas as minhas reflexões pararam. Como tocasse um sino, pela escada da direita desceu um
               cavalheiro elegante que tapava o rosto com o lenço. E logo depois, grácil e airosa, com um rico
               vestido  preto,  caminhou  pela  galeria,  olhando  altivamente  os  presos,  uma  mulher  cuja  fronte
               parecia a pura fronte da inocência.


               O guarda curvou-se:


               – O Dr. Saturnino e a esposa...


               Eu vira o último crime de amor da detenção.


               A Galeria Superior


               A galeria superior é dividida por um tapume, com portas de espaço a espaço para o livre trânsito
               dos guardas. Os presos não podem ver os cubículos fronteiros. Os olhos abrangem apenas os
               muros brancos e a divisão de madeira que barra a cal das paredes. Quando a vigilância diminui,
               falam de cubículo para cubículo, atiram por cima do tapume jornais, cartas, recordações.


               Estão atualmente na galeria duzentos e trinta e oito detentos. A aglomeração torna-os hostis. Há
               confabulações  de  ódio,  murmúrios  de  raiva,  risos  que  cortam  como  navalhas.  Com  o  sentido
               auditivo educadíssimo, basta que se dirija a palavra baixo a alguém do primeiro cubículo para que
               o saibam no último. E então surgem todos, agarram-se às grades, com o olhar escarninho dos
               bandidos e a curiosidade má que lhes decompõe a cara.


               Ah! essa galeria! Tem qualquer coisa de sinistro e de canalha, um ar de hospedaria da infâmia à
               beira da vida. Nos cubículos há, às vezes, dezenove homens condenados por crimes diversos,
               desde os defloradores de senhoras de dezoito anos até os ladrões assassinos. A promiscuidade
               enoja. No espaço estreito, uns lavam o chão, outros jogam, outros manipulam, com miolo  de pão,
               santos, flores e pedras de dominó, e há ainda os que escrevem planos de fuga, os professores de
               roubo,  os  iniciadores  dos  vícios,  os  íntimos  passando  pelos  ombros  dos  amigos o  braço
               caricioso... Quantos crimes se premeditam ali? Quantas perversidades rebentam na luz suja dos
               cárceres preventivos? Saciados da premeditação, há os jornais que lhes citam os nomes, há o
               desejo de possuir uma arma, desejo capaz de os fazer aguçar asas de caneca, o aço que prende
               a piaçava das vassouras, as colheres de sopa, e há ainda o jogo. Nesses cubículos joga-se mais
               de quarenta espécies de jogos. Eu só contei trinta e sete, dos quais os mais originais – o camaleão,
               a mosca, o periquito, o tigre, a escova, o osso, a sueca, o laço, as três chapas – são prodígios de
               malandragem. E nenhum deles se recusa aos parceiros. Quando algum desconhecido passa,
               deixam tudo, precipitam-se, alguns nus, outros em ceroulas, e há como um panorama sinistro e
               caótico, – negros degenerados, mulatos  com contrações de símios, caras de velhos solenes,
               caras  torpes  de  gatunos,  cretinos  babando  um  riso  alvar,  agitados  delirantes,  e  mãos,  mãos
               estranhas de delinqüentes, finas e tortas umas, grossas algumas, moles e tenras outras, que se
               grudam aos varões de ferro com o embate furioso de um vagalhão.
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