Page 111 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Era simpático, sim, senhor, não posso negar. Ficamos tão amigos que, ao chegar, ele foi morar
conosco. Primeiro, tudo andou direito, mas depois começaram os cochicos, as frases, as cartas
anônimas. Era preciso tomar uma resolução. Disse ao José que não o podia ter mais em casa –
por certas dificuldades. Ele saiu, mas eu sabia que a Adélia lhe falava. Passaram-se meses nessa
tortura. De vez em quando eu a interrogava e sempre obtinha respostas negativas. Certo dia passei
pelo José na rua e ele riu. Em casa pus Adélia em confissão, e ela disse: "É mesmo, fizeste bem
em pôr esse homem na rua. Andava-me tentanto e foi tão ingrato que nem se despediu da gente
direito." De outra feita, encontrei-os na esquina, conversando e afinal, em casa. Foi então que eu
fiquei desatinado.
Oh! o amor! Eu ouvira o amor sexagenário, o amor doloroso, o amor lilliput desse ménage de
crianças! Todos tinham chegado ao mesmo fim trágico, ontem criaturas dignas, hoje com as mãos
vermelhas de sangue, amanhã condenados por um juiz indiferente. Fiz um gesto. O pequeno
insistiu.
– Já que estou aqui, quero trabalhar. Nunca passei sem trabalhar. Peço a V. S para ver se
a
entro como servente. Não quero estar no cubículo com aquela gente.
Neste momento traziam uma negra roliça, de dentes afiados, com um sorriso alvar a iluminar-lhe
a cara. Era a Herculana, a autora de um crime célebre. Matara o amante enquanto este dormia,
acendera todas as velas que encontrara e começara a cantar. O amante tinha vinte e três anos.
– E por que foi?
– Ora, nós brigamos. Eu gostava dele. Nós brigamos. Um dia, ele me disse uma porção de nomes.
Eu fiquei calada, mas quando o vi deitado, com o pescoço à mostra, roncando, parece que o diabo
me tentou. Eu fui então, com a faca...
Aproximei-me, e bem perto, quase murmurando as palavras:
– Diga: era capaz de fazer o mesmo outra vez, de abrir o pescoço do pobre rapaz, de acender
as velas, de cantar? diga: era?
Ela riu como uma fera boceja, e disse num arranco de todo o ser:
– Eu era, sim, senhor...
Que estranha psicologia a dessas flores magníficas do jardim do crime! Que poderoso
transformador o amor! Bem dizia Tennyson ao evocá-lo: Thou madest Life, in man and brute, thou
madest Death... Eu começara a minha visita à beira do desespero, na púrpura de uma moita de
lírios vermelhos.
Com os corações em sangue, vi uma coleção de assassinos, desde um velho lamentável até
uma criança honesta, postos fora da sociedade pelo desvario, pela loucura que a paixão sopra
no mundo. A mulher, que os poetas levam a cantar, Vênus inconsciente e perversa, Lilith, lendária,
surgia nessa ruína, perdendo, estragando, corroendo, matando, e eu sentia, no olhar e