Page 109 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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entrei em casa. Silvéria conversava com a vizinha e dizia: "Mas se eu já lhe disse que podia
vir..." Não pude comer a sopa; fui logo deitar-me. Do quarto via-se a sala, onde dormia o pequeno
filho dela,e não demorou muito tempo que a vizinha não colocassse na cama outro travesseiro.
Eu estava olhando, à luz da lamparina. Deixei passar alguns minutos e disse: "Ó Silvéria, vem-te
deitar." Ela não respondeu. "Silvéria, já disse que viesses dormir!" "Já vou." De repente, os cães,
no terreiro, começaram a ladrar. Era um alarido. Saltei da cama, agarrei o revólver. "Quem está
aí?" Ela apareceu então: "Deita-te, não é nada." "Qual! Pois se os cães estão ladrando...É alguém."
"Que vais fazer?" "Ver". "Não vás, Firmino não vás, não é nada!" E agarrava-se ao meu braço.
"Como não hei de ir? Se for gatuno? Talvez esteja a roubar a criação." "Firmino, meu velho, não
vás!" Dei-lhe um empurrão, abri a tranca. Na moita, só a lua aclarava as moitas e os cães arfavam
cansados. Voltei. Ela estava sentada, chorando. "Tu desconfias de mim!" "Eu? que falso!" "Tu
pensavas que era o Herculano!" "Eu? Nem pensava nisso!" "Pensavas, sim! E o melhor é acabar
com isso. Vou-me embora!" Ela estava à espera de um pretexto. Para que discussões? Deitei-
me outra vez, sem poder dormir. Silvéria continuava na sala, remexendo os móveis. Pela
madrugada, já os galos tinham cantado e o luar estava desmaiado, ouvi que abriam a porta. Ergui-
me, corri. Ela ia pela estrada, com a trouxa da roupa, ia sem se despedir de mim, que lhe dera
tudo, ia embora... Deitei a gritar: "Silvéria! Silvéria! Não vás." "Adeus!" "Mas tu estás maluca,
mulher." "Não me fales, estou farta." "Vais para o Herculano?" "Vou, sim, e agora?" "Um homem
que podia ser teu filho!" "Talvez seja mais feliz." "Silvéria! Silvéria!" "Basta de conversa fiada..." Eu
então senti um desespero que me sacudia os nervos e não pude mais...
Para ouvir a história, encostara a cabeça na pedra em que os varões de ferro se encravavam. O
pobre velho tremia num soluço sem fim. Então, eu lhe estendi a mão sem uma palavra, e segui,
como se tivesse acordado de um horrível pesadelo. O guarda Barros acompanhava-me.
– Pobre homem! Tentou suicidar-se e é preciso uma vigilância extrema para que aqui não tente
outra vez contra a própria vida.
Já os sinais misteriosos com os quais se correspondem os detentos haviam anunciado uma
pessoa estranha ao estabelecimento. Em todos os cubículos, nas galerias, correra o som
anunciador, e nas grades amontoavam-se as caras dos que não serão em breve da sociedade.
Barros parou pouco adiante, apontando-me um homem magro, pálido, com o pescoço embrulhado
num cache-nez. O homem corcovava tossindo, e os seus dois olhos brilhavam como os de um
tísico. Ao lado, um português bem disposto sorria.
– O seu crime?
– Umas rusgas, tentativa de morte, não fui eu...
– E o seu?
– Matei minha mulher.
Esse também confessava. Então era verdade? O crime de amor é o único confessável? Acerquei-
me cheio de simpatia, e o sujeito magro não esperou que eu lhe perguntasse mais nada. Antes,
na ânsia de desabafar, atirou o cache-nez às costas e começou: