Page 108 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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Alguns chegam mesmo a reviver detalhes insignificantes. Ao passo que os gatunos, os
incendiários e os homicidas vulgares, mesmo tendo a cumprir sentenças longas, negam sempre
o crime; essas vítimas da paixão não se cansam de contar a sua história, cada vez com maior
número de minúcias e mais abundância de memória.
– Pois, vejamos as vítimas do amor!
O capitão mandou chamar o chefe dos guardas, Antônio Barros, e saímos para o pátio, onde os
presos serventes mourejavam.
– Há uns cinco casos notáveis, informava-se o guarda. Vamos entrar na primeira galeria.
A galeria é um enorme corredor, ladeado de cubículos engradados. A má disposição de luz, com
a claridade da frente e dos fundos e a claridade das prisões, dá a esse corredor uma perpétua
atmosfera de meia sombra. Através dos muros brancos ouve-se o sussurro das conversas
murmuradas. Barros aponta-me silenciosamente uma das jaulas. Aproximo-me e do fundo vejo
surgir um velho preto, magro, seco, com o olhar ardente e a cabeça branca. Pergunto receoso:
– Por que está aqui?
– Porque matei.
Nas prisões há duas coisas revoltantes: o cinismo do que nega e o que confessa como uma
afronta. Aquela frase breve tinha, porém, cunho de uma dolorosa sinceridade.
– Eu sou do crime da Estrada Real, continuou o pobre agarrando-se aos varões de ferro. Chamo-
me Salvador Firmino, tenho sessenta e três anos.
– E matou?
– Porque ela quis.
E de repente, como se a lembrança da cena o forçasse a se desculpar, a sua cabeça branca
curvou-se, os seus olhos lampejaram:
– Quando eu encontrei Silvéria, era casado e feliz. Abandonei a mulher, só para viver com ela.
Silvéria tinha dois filhos. Eduquei-os eu, dei-lhes o sustento, o ensino. Uma casa que consegui
comprar logo passei para o seu nome, e de tudo eu me lembrava que a tornasse feliz. Silvéria
tinha quarenta anos e eu gostava dela. Foi quando apareceu o outro. A mulher ficou com a cabeça
virada, já não lhe bastava o meu carinho. Saía só, para passear com ele, não se importava com o
passado, não me falava. O desaforo chegou ao ponto do outro vir trazê-la até à porta de casa. As
vezes, eu os via de longe e entrava no mato para os não encontrar. Que dor! Eu tinha tanto medo
de acabar... Uma noite, ela saiu, esteve na festa de Nossa Senhora e voltou acompanhada até à
porta pelo outro. Eu bem que os vira, mas fingi não saber de nada quando