Page 107 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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A observação de tantos casos não me dava o tipo do explorador, não me mostrava  os peralvilhos
               que vivem à custa das pobres crianças, receosas de me mostrar as casas onde são torturadas.
               Encontrei-o, porém, o tipo ideal, o drama resumo de um estado social, a tragédia soluçante que
               cada vez mais se alastra.


               Logo no começo da Rua Uruguaiana há uma mulher de cor branca, fisionomia torva, sempre
               embiocada em panos pretos. Chamam-na a Cameleão, alcunha que lhe ficou do peralta do filho.
               Esse ente repelente tem uma estalagem, um prédio; é rica e pede esmola, provando ser viúva
               pobre.  Quando  encontra  crianças,  leva-as  para  a  casa,  um  doloroso  centro  de  lenocínio  e
               velhacaria, a extorqui-las. Presentemente tem cinco petizes, todos menores de doze anos; três
               meninos,  Alfredo,  Felipe  e  Narciso,  e  duas  meninas,  Gertrudes  e  Madalena.  As  criancinhas
               saem pela manhã, voltam para almoçar, tornam a sair e só voltam à noite, para o interrogatório
               e a palmatória.


               Um dos pequenos mostrou-me o ogre horrendo. Arrastava-se com uma voz pastosa e, quando me
               viu, trêmula curvou-se.


               – Pelo amor de Deus! uma esmola para os desgraçadinhos!


               Os desgraçadinhos, na tarde chuvosa, pareciam transidos.


               O vento fustigava-lhes as carnes seminuas e eles, agarrados uns aos outros, na fraternidade do
               sofrimento, sem pai, sem mãe, sem amparo, erguiam os olhos para o céu numa angustiosa súplica.


               ONDE ÀS VEZES TERMINA A RUA


               Crimes de Amor


               Ao entrar no seu gabinete, severamente mobiliado de canela  escura, o capitão  Meira Lima disse:


               –  Meu  caro  amigo,  tem  você  ampla  liberdade.  Pode  ver,  interrogar,  examinar.  Há  agora  na
               detenção  quatrocentos  e  cinqüenta  e  quatro  detentos,  dos  quais  trezentos  e  noventa  e  cinco
               homens e cinqüenta e nove mulheres. Antigamente, era maior o número. Nós conseguimos que
               se não mantivessem aqui presos à disposição dos delegados sem processo. Mas, ainda assim,
               o exército do crime está bem representado. Há gatunos, desordeiros, incendiários, defloradores,
               mulheres perdidas, vítimas da sorte, criminosos por amor – toda uma flora estranha e curiosa.
               Estude você os crimes de amor. Lembra-se de um dramalhão do repertório da Ismênia: Aimée, ou
               o assassino por amor? Não é do seu tempo nem do meu, mas comoveu a geração passada e
               tem contínuos exemplos nas penitenciárias.


               – E nas literaturas.


               – Pois vá ver esses criminosos. O assassino por amor é o único delinqüente que confessa o crime.
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