Page 106 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
P. 106

esmola, atacando as senhoras, pedindo algum dinheiro para a mãe moribunda. Laura e Amélia,
               filhas da senhora Josefina, têm um irmão que aprende o ofício de carpinteiro, moram na Rua da
               Providência e passam o dia a arranjar dinheiro para a mamã mais o padrasto.


               – E o padrasto, que faz?


               – Dá pancada na gente quando não se anda direito.


               Estela, mulatinha, vive com uma dama que se diz sua avó, na Rua Senador Eusébio. As vezes
               fica até às dez horas da noite à porta da Central, esmolando. Nicota, moradora no Pedregulho,
               tem treze anos e perigosa viveza de olhar. A puberdade, a languidez dos membros rijos dão-lhe
               receitas grandes. É mandada pelo padrasto, um português chamado Jerônimo, que a industria.
               Explora a miséria no jardim de Eros, fazendo tudo quanto a não prejudica  definitivamente, à porta
               dos quartéis, pelos bairros comerciais, ao escurecer. Confessa que vai abandonar o Jerônimo pelo
               sargento Gomes, a quem ama. A lista não tem fim, é o mesmo fato com variantes secundárias.


               Se nessas crianças encontramos o abismo da perdição a tragá-las, nos pequenos vemos um
               grande esboço de todos os crimes.


               Em  quatro  dias  interrogamos  noventa  e  seis  garotos,  estrangeiros,  negros,  mulatos,  uma
               sociedade movediça e dolorosa. Há desde os pequenos que sustentam famílias até os gatunos
               precoces que se deixam roubar na vermelhinha à beira do cais, entre murros e cachações.


               O primeiro a encontrarmos é o negrinho Félix, morador à Rua do Costa, órfão, que vive na casa
               de uma família. Como as coisas estão más, sai de sacola, a esmolar e a roubar. Já esteve preso
               por apanhar várias amostras de uma loja, mas um moço da polícia, que gosta de uma das meninas
               da casa, soltou-o.


               – Que fazes hoje?


               – Hoje tenho que roubar um queijo. Sinhazinha diz que não apareça sem um queijo.


               Armando,  petiz  de  dez  anos,  diz-se  italiano  por  causa  das  dúvidas.  Pára  no  Largo  da  Sé  e,
               ingenuamente, conta que a família não faz comida há três anos. É ele que arranja tudo, fora os
               cobres.  José  Vizuvi,  também  italiano,  é  filho  do  conhecido  mendigo  Vizuvi.  Sai  da  Rua  do
               Alcântara, onde mora, às 5 da manhã, à procura dos pães que os padeiros costumam deixar
               nas janelas e à porta de certas casas. Quando a janela é alta serve-se de um pau em forma de
               ferrão. O pai ensina-o a roubar. Dudu de Oliveira passa o dia no Mercado e nos bairros centrais.
               A mãe, fingindo-se de cega, esmola no Largo do Machado. Ele leva recados suspeitos e propõe-
               se a misteres ignóbeis.


               João Silva, morador à Rua Senador Pompeu, com treze anos, também serve para  esses serviços
               pouco asseados. A mãe, sem emprego, é espancada pelo amante que lhe arranca todo o dinheiro.
               Franzino, doloroso, esse pretinho na ânsia da vida sustenta um caften reles. Todos esses nomes
               ignorados escondem dramas pungentes, cenas de horror, vidas perdidas.
   101   102   103   104   105   106   107   108   109   110   111