Page 105 - 3M A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS
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– Ai! Nossa Senhora, juro por Deus que todo o desejo que tenho é trabalhar. .


               Simples blague. Dêem-lhe um emprego e rejeitará, inutilizado pela vida de sarjeta, de desbrio,
               de inconsciente sem-vergonhice a que o forçou o pai.


               Esse bando, porém, é evidentemente defeituoso; ganha dinheiro, como se estivesse empregado
               para  sustentar  a  família.  Há  o  outro,  o  maior,  o  infindável,  que  a  polícia  parece  ignorar,  a
               exploração  capaz  de  emocionar  os  delegados  nos  dramalhões,  a  indústria  da  esmola  infantil
               exercida por um grupo de matronas indignas e de homens criminosos, as criancinhas implumes,
               piolhentas e sujas, que saem para a rua às varadas, obrigadas ao sustento de casas inteiras; há
               a exploração lenta, que ensina os pequenos a roubar e as meninas a se prostituirem; o caftismo
               disfarçado, que espanca, maltrata e extorque. É um vasto tremedal a que a retórica sentimental
               nada adianta, cujo mal a segurança pública não quer remediar. Basta ter a simples curiosidade
               para mergulhar nesse caleidoscópio infinito de cenas torturantes de uma mesma ação, basta parar
               a uma esquina e ouvir a narração dessas tragédias vulgares e de fácil remédio.


               A série de meninas é enorme, desde as cínicas de face terrosa às ingênuas e lindas.


               – Como se chama você?


               – Elisinha, sim senhor.


               É parda: tem nove anos.


               Embrulhada  nuns  farrapos,  a  tremer  com  os  beicinhos  roxos  e  as  mãos  no  ar,  muito  aflita,
               parece que lhe vão bater. Mora na Rua Frei Caneca.


               Não vai para a casa, não pode ir. A madrinha bate-lhe, tem o corpo cheio de equimoses.


               – Quando não arranjo bastante para a madrinha e as filhas, dão-me sovas!


               Destes casos há muitos com diversas modalidades. Jovita, por exemplo, pede esmola com uma
               bandeja dizendo que é missa pedida ou promessa feita. A mulher que a criou e a explora, a terrível
               megera Maria Trapo Velho, mora na Rua São Diogo e dá-lhe conselhos de roubo.


               – Ela diz que, quando encontrar roupas ou outros objetos, meta no saco. Quando passo uma
               semana sem levar nada, põe-me de castigo, com os joelhos em cima do milho e sem comer.


               Rosinha mora na Rua Formosa. Sai acompanhando uma senhora que finge de cega. A mãe é
               negra; ela é alva e todos ficam admirados!


               Judite, com oito anos, moradora à Rua da Lapa, andava com o pai pelo subúrbio, tocando realejo.
               O  pai  fingia-se  de  cego,  e  como  um  cidadão  descobrisse  a  patifaria,  é  ela  só  quem
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