Page 98 - 2M A INTRUSA
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                         A baronesa abriu a porta do corredor e arrastando a neta saiu, acompanhada
                  pelo marido, que levava as mãos cheias de embrulhos, fingindo-se muito
                  atrapalhado com eles.
                         Alice sorriu. Certamente a vida é às vezes bem amarga e dura de ganhar!...
                  Que deveria ela esperar?... Fosse o que fosse esperaria até o fim!



                  Capítulo XVI

                         Padre Assunção morava para os lados da Lapa, numa casa encravada no
                  morro de Santa Teresa, velha e esguia como uma torre, com frente de dois andares
                  para uma rua tranqüila e fundos rentes a um jardinzinho bem cultivado.
                         Entre o habitante e a habitação havia certas analogias de forma e de caráter.
                  Tinham ambos a silhueta fina e o aspecto melancólico e fatigado. E se as paredes
                  grossas, da velha construção, davam a idéia da firmeza que o vulto ossudo do padre
                  sugeria, as rosas brancas entrelaçadas junto ao telhado, no jardim do morro, fariam
                  lembrar a doçura dos seus sentimentos impregnados de idealidade...
                         As    janelas   de    guilhotina,  dos    compartimentos      superiores,    viviam
                  escancaradas para o azul da baía, tais como os olhos do Assunção para um sonho
                  infinito...
                         Todo o edifício, da base ao cimo, parecia sossegado; a loja era habitada por
                  um casal de surdos-mudos, cujos gozos e sofrimentos não varavam paredes nem
                  vãos; o primeiro andar pela mãe de Assunção e o andar superior, mais resumido,
                  por ele só, que o enchia com os seus livros e as mobílias antigas do seu quarto.
                         A paz, se o silêncio é paz, seria só aparente. O casal de mudos era pobre e
                  viviam ambos sob a canga do trabalho, cosendo botinas para as fábricas de calçado.
                         D. Sofia, a mãe de Assunção, confessava desgostosa não ter criado o filho
                  para Deus, mas para si. Aquela batina preta era o espantalho da sua alegria. Para
                  ela, o misticismo do filho fora uma forma de doença a que não soubera dar remédio,
                  e as maiores queixas voltava-as contra si própria, que o deixara afinal enveredar por
                  aquele caminho de sacrifício.
                         Ela educara-o para o mundo, para a família, para o amor! Sonhara com outra
                  filha, a mulher dele, que a ajudaria a amimá-lo, e lhe daria meia dúzia de netos fortes
                  e bonitos! O sacerdócio reduzira a cinzas as suas esperanças luminosas. Tudo
                  acabava, tudo morria nele, que se abatera de repente, como uma vela rota no meio
                  do temporal.
                         De que lhe servira ter-lhe insuflado o amor pela natureza, pela glória, pela
                  pátria; ter-se sacrificado tanto para o tornar física e moralmente um forte, se ele lhe
                  escapara, por entre as mãos frágeis, para o vácuo? Pobres mães, como os seus
                  desígnios saem errados! A quantos sacrifícios ela se sujeitara, quando ele era
                  pequeno, com o pensamento de que mais tarde ela teria de tudo a compensação,
                  vendo o seu filho gozar a vida larga e amplamente!
                         E ei-lo um concentrado... um padre! Fora o colégio dos padres que lhe
                  inspirara aquilo, ou alguma paixão? Ele nunca o dissera. E que importava a causa,
                  se o efeito ali estava e irremediável!
                         Amorosa e amiga de crianças, ela lamentara em moça não ter podido dar
                  irmãos ao seu filho, que o alegrassem, arrastando-o em correrias; companheiros de
                  infância, confidentes amigos da mocidade! E era daí também que lhe nascera a
                  visão daquele futuro ruidoso, quando ela já velha visse a sua casa invadida pelo riso
                  e a jovialidade dos netos!
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