Page 101 - 2M A INTRUSA
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                         Mas a salvação de D. Sofia eram os pequerruchos, muito clarinhos e loiros,
                  tais quais ela sonhara os netos. Um começava a falar, o outro já dizia tudo numa
                  meia língua que era uma música deliciosa. Ela, que tinha o espírito criador e era,
                  sobre todas as coisas, amiga da humanidade, toda se desvelava em aperfeiçoar
                  aqueles dois seres, caídos como mercê divina nos seus braços saudosos.
                         Já decretara: um seria médico, o outro seria engenheiro; e ambos produziriam
                  obras benéficas e se casariam com bondosas mulheres!
                         Assunção sorria, animando a fantasia da sua querida velha. A experiência de
                  nada serve aos teimosos: e ela era uma obstinada.
                         Não fora ele acalentado com as mesmas esperanças enganosas, certezas
                  que ficaram em esboço nos dias da mocidade?
                         Às vezes ainda, interrompendo o silêncio do serão, D. Sofia suspirava:

                         – Quando me lembro, meu filho...
                         – Não se lembre; apague da lembrança o que não lhe for agradável! Assim,
                  sou mais seu...
                         – És de Deus. Eu sou humana e amo a humanidade acima de tudo o mais!
                  Não sei a que fonte foste buscar esse misticismo, que te isolou do mundo para que
                  te criei. A tua profissão obriga-me a respeitar-te, a temer-te quase... Há ocasiões em
                  que deixo de ver em ti o meu filho, sujeito à minha autoridade, para só considerar o
                  sacerdote, o julgador que me há de punir ou absolver...


                         Às vezes, também, era ele que falava, consolando-a:

                         – A sua vida conjugal foi curta. Meu pai não lhe deixou senão a impressão da
                  felicidade estonteadora. Períodos longos de casamento desvanecem quase sempre
                  encantos que julgaríamos eternos. Assim, vivo para um ideal que não me pode
                  trazer desilusões... Depois, acredite: se eu não fosse padre, seria igualmente
                  celibatário...

                         A voz dele era morna, abafada por um desgosto calado, amigo do segredo.
                         A mãe fingia acreditar naquela inspiração do céu, descida a contentar a alma
                  silenciosa do filho. O fato estava consumado, toda a reação seria loucura; procurava
                  resignar-se. Em vão. A igreja era a sua rival, tirara-lhe o filho dos braços, impusera-
                  lhe o sacrifício por norma e a solidão por dever!
                         Ainda se ele tivesse um organismo de combatente, de lutador! Se o visse no
                  parlamento... se o lesse nos livros... Mas Assunção talhara-se na forma rústica e
                  acomodada do capelão de aldeia, alma simples em corpo simples, servo humilde
                  dos homens e de Deus.
                         Por fortuna, ele era muito tolerante: parecia-lhe a ela, às vezes, que ele se
                  vestira de batina por comodidade egoísta, como um meio de fugir às assiduidades
                  dos outros homens e à solicitação das mulheres... Era um meio de viver no mundo
                  fora do mundo, conforme as exigências da sua neurastenia...
                         Passado um longo período de abatimento e de taciturnidade, Assunção
                  readquiria a calma de outros dias, e foi então que principiou a interessar-se pelas
                  leituras portuguesas, a enriquecer a sua modesta biblioteca de livros clássicos e a
                  jardinar no terreno do morro, para onde abria a porta do seu quarto.
                         Argemiro enviuvara, e era à influência da sua companhia, muito mais assídua,
                  que D. Sofia atribuía esse milagre.


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