Page 97 - 2M A INTRUSA
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                  enluarada da pele. A boca fina esquecera a habitual expressão, arqueando-se muda
                  sob o nariz pequenino e afilado. Só os seus olhos aguados, ensombrados por
                  sobrancelhas ainda negras, refletiam contornos movediços de pensamentos
                  dolorosos.
                         Argemiro articulava as palavras com propositada clareza; dizia ainda:

                         – A minha vida é passada na rua. Não esperem nunca por mim. As suas
                  horas serão distribuídas aqui como eram lá em cima. O hóspede sou eu.

                         O barão esboçou um protesto. A baronesa agradeceu, e a porta escancarou-
                  se para dar passagem ao Feliciano sobraçando embrulhos. Atrás dele o carregador,
                  as malas, a confusão.
                         Argemiro alegou necessidade de uma entrevista cuja hora se aproximava, e
                  fugiu.
                         Chegara a hora de ver a outra, a tal D. Alice, que deveriam tratar como
                  pessoa de família!... Se valera a pena vir de tão longe para isso! Pessoa da família...
                  Que heresia e que escárnio! A facilidade com que se dizem certas coisas! Como se
                  uma criatura qualquer pudesse entrar por uma família adentro, como por um hotel,
                  sem cerimônia! Para que tinha vindo? Para verificar um fato já conhecido?... Não
                  estariam ainda a tempo de voltar para trás, para a felicidade silenciosa das suas
                  velhas mangueiras, e das suas águas fugitivas?
                         Isso seria razoável, se não houvesse a vingar a doce Maria, tão
                  abandonada... Pobre filha, ter o seu lar, o seu lugar, invadido por uma intrusa de má
                  morte... O Rio de Janeiro era, decididamente, a capital da perdição. Quem lhe dera
                  ter nascido e vivido numa vila inculta, sem outros rumores que os dos ribeiros, do
                  vento ou do sino da ermida branca e sossegada! Aquela saleta... sim... A mobília era
                  a mesma... Mas tinha outra disposição... E haviam acrescentado alguns objetos
                  novos... tapetes... quadros... idéias de mulher voluptuosa!
                         Argemiro, sempre que saía, tocava a campainha elétrica da porta de um
                  modo especial, como um aviso a Alice para que ela pudesse circular à vontade por
                  toda a casa.
                         Era a única comunicação que lhe fazia diretamente sem perceber que sentia
                  certo contentamento ao executá-la. E a campainha tilintou na casa silenciosa.
                         Os velhos contemplavam-se interrogativamente, ainda na saleta, ambos
                  tristes e constrangidos, quando Glória entrou na sala pela mão da governanta. O
                  barão levantou-se, a baronesa olhou para a moça com dura frieza.
                         Ela ali estava em frente, nem submissa nem altiva, um pouco pálida, pela
                  intuição talvez de vir ao encontro de inimigos.


                         – Vovó! É D. Alice!

                         Mas a avó de Glória, repreendendo o entusiasmo da neta com um olhar,
                  cumprimentou a moça de um modo quase imperceptível. O barão precipitou-se, para
                  um aperto de mão e para apanhar a bolsinha e o lenço da mulher, pousados no
                  sofá.


                         – Meu quarto está pronto? – perguntou a baronesa, como se falasse a uma
                  criada.
                         – Está... sim, minha senhora... Queira seguir-me...
                         – Não é preciso... Eu sei o caminho; Glória! Vem tu comigo!

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