Page 93 - 2M A INTRUSA
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tornaria um dia possível tal ventura... Por que hão de vir tão tarde semelhantes
sonhos?!
– Para que se não realizem.
– É isso. Minha mãe, lembras-te? adorava a música e o piano poucos
segredos teria para ela. Foi pena que não me tivesse transmitido essa prenda... A
arte da música é perfeitamente compatível com o sacerdócio e eu teria uma válvula
para as minhas febres...
– Escreve...
– A palavra é indiscreta e arrastaria o meu temperamento, que eu trago
fechado à chave...
– Nunca pensei que ele se submetesse a isso. És um forte, Assunção!
– Nunca pensaste, por quê?!
– Porque te conheço desde pequeno. No colégio ou em casa, foste sempre
um rebelde. Não posso esquecer-me do dia em que minha mulher, nesta mesma
sala, ali, naquele canto, me disse que tu ias tomar ordens.
– Efetivamente, foi ela a primeira pessoa a quem confiei essa resolução!
– Como eu protestasse, indignado contra a idéia (que sempre me foi muito
desagradável), ela observou: Tu zangas-te! pois eu estimo... Ele será o meu
confessor! – Tudo isso vai longe...
– Para mim não. Parece-me que tudo se passou ontem... No meu sonho, esta
madrugada, reviveram essas comoções... As imagens da catedral, todas de
mármore branco, tinham, na opacidade da pedra, a expressão humana das criaturas
que amei na minha adolescência e na minha mocidade... As melodias gloriosas que
eu derramava pela vastidão do templo eram formadas pelas vozes delas,
ressuscitadas miraculosamente naquelas endeixas sacras... Não eram só vozes
humanas que eu reconhecia nas sonoridades da minha música, eram também
outros sons que tenho sempre guardados no ouvido: o ranger da porta do
seminário... o badalar do sino para a minha primeira missa... e o rugido das sedas de
tua mulher no dia em que me foi fazer a primeira confissão... Nunca me esqueci... foi
como um ruflar de asas... Pois a minha alma transportava essas impressões em
largos cânticos, vendo as imagens extáticas todas voltadas para a chuva do meu
pranto e sentindo a minha alma encher o mundo! Um sonho de artista genial, e em
que eu gozei as alegrias fecundas da criação. Não te parece que sejam os artistas
os homens mais felizes da Terra?
– Tenho convivido pouco com eles, e como não me basta imaginar... Quem
sabe? Olha, toma vinho. Creio que te basta o da missa...
– Pouco mais Que é isso?!
– Nada...
Argemiro tivera um pequeno sobressalto involuntário, vendo a mão negra do
Feliciano pegar na porcelana cor de leite do seu prato.
– Nunca te aconteceu, ao ter qualquer impressão, sentir mau ou bom gosto
na boca?
– Nunca, respondeu o padre.
– Pois agora foi como se eu tivesse tomado uma colher de sumo de limão!
O olhar de Argemiro acompanhou o vulto do negro, que se dirigia para a
copa. Assunção argumentou:
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