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                  tornaria um dia possível tal ventura... Por que hão de vir tão tarde semelhantes
                  sonhos?!
                         – Para que se não realizem.
                         – É isso. Minha mãe, lembras-te? adorava a música e o piano poucos
                  segredos teria para ela. Foi pena que não me tivesse transmitido essa prenda... A
                  arte da música é perfeitamente compatível com o sacerdócio e eu teria uma válvula
                  para as minhas febres...
                         – Escreve...
                         – A palavra é indiscreta e arrastaria o meu temperamento, que eu trago
                  fechado à chave...
                         – Nunca pensei que ele se submetesse a isso. És um forte, Assunção!
                         – Nunca pensaste, por quê?!
                         – Porque te conheço desde pequeno. No colégio ou em casa, foste sempre
                  um rebelde. Não posso esquecer-me do dia em que minha mulher, nesta mesma
                  sala, ali, naquele canto, me disse que tu ias tomar ordens.
                         – Efetivamente, foi ela a primeira pessoa a quem confiei essa resolução!
                         – Como eu protestasse, indignado contra a idéia (que sempre me foi muito
                  desagradável), ela observou: Tu zangas-te! pois eu estimo... Ele será o meu
                  confessor! – Tudo isso vai longe...
                         – Para mim não. Parece-me que tudo se passou ontem... No meu sonho, esta
                  madrugada, reviveram essas comoções... As imagens da catedral, todas de
                  mármore branco, tinham, na opacidade da pedra, a expressão humana das criaturas
                  que amei na minha adolescência e na minha mocidade... As melodias gloriosas que
                  eu derramava pela vastidão do templo eram formadas pelas vozes delas,
                  ressuscitadas miraculosamente naquelas endeixas sacras... Não eram só vozes
                  humanas que eu reconhecia nas sonoridades da minha música, eram também
                  outros sons que tenho sempre guardados no ouvido: o ranger da porta do
                  seminário... o badalar do sino para a minha primeira missa... e o rugido das sedas de
                  tua mulher no dia em que me foi fazer a primeira confissão... Nunca me esqueci... foi
                  como um ruflar de asas... Pois a minha alma transportava essas impressões em
                  largos cânticos, vendo as imagens extáticas todas voltadas para a chuva do meu
                  pranto e sentindo a minha alma encher o mundo! Um sonho de artista genial, e em
                  que eu gozei as alegrias fecundas da criação. Não te parece que sejam os artistas
                  os homens mais felizes da Terra?
                         – Tenho convivido pouco com eles, e como não me basta imaginar... Quem
                  sabe? Olha, toma vinho. Creio que te basta o da missa...
                         – Pouco mais Que é isso?!
                         – Nada...


                         Argemiro tivera um pequeno sobressalto involuntário, vendo a mão negra do
                  Feliciano pegar na porcelana cor de leite do seu prato.

                         – Nunca te aconteceu, ao ter qualquer impressão, sentir mau ou bom gosto
                  na boca?
                         – Nunca, respondeu o padre.
                         – Pois agora foi como se eu tivesse tomado uma colher de sumo de limão!


                         O olhar de Argemiro acompanhou o vulto do negro, que se dirigia para a
                  copa. Assunção argumentou:


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