Page 94 - 2M A INTRUSA
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– Está nas tuas mãos o remédio.
– Despedi-lo?
– Pois então?
– Acabo por fazer isso mesmo. Realmente, não há nada como a ignorância
para certa gente. Meu sogro fez de um moleque humilde, um homem ruim... Se em
vez de o mandar para a escola, com bolsa a tiracolo e sapatinhos de botões, o
deixassem na modéstia da cozinha ou da estrebaria, ele não teria agora nem a
revolta da sua cor nem a da sua posição... O que o torna mau é a inveja e a sua
ignorância mal desbastada.
– Ele não é tão mau assim!
– Defende-o agora!
O Feliciano voltou com a sobremesa, um doce novo, desconhecido de ambos
e que o copeiro não teve remédio senão confessar ter sido preparado por D. Alice,
receoso de que ela o ouvisse por detrás das portas.
Depois do café, ao entrarem os dois sozinhos para a biblioteca, Argemiro
notou:
– Foi o meu último dia de bem-estar. Reparaste? Nada faltou. É uma alegria,
uma casa assim! E rara, eu sei, nas minhas condições, raríssima! Perfeita, a minha
governanta! Se tem defeitos, nunca os deixa transparecer... Nem é possível que os
tenha...
– Estás doido! Ela é uma mulher como muitas; somente cuidadosa de não
perder um emprego bem remunerado; mais nada.
– A esta acusas!
– Não. Esclareço-te. Jogaste uma cartada, foste feliz, dá-te por bem pago por
estes largos meses de tranqüilidade. Supondo que tua sogra se incompatibilize com
a D. Alice, acharás depois outra governanta nas mesmas condições. Esta é tão
perfeita como será a outra, desde que tenhas com ela as mesmas exigências que
tiveste com esta...
– Pensas então que seja só movida pelo interesse pecuniário que ela tão bem
se desempenha de tudo?
– Penso... que isso concorrerá!
– Pensas que só o interesse de agradar e de conservar um emprego
mesquinho dite as lições de moral e de desenho que ela dá a Glória?!
– Concorrerá...
– És mau; ou não és sincero! Eu falo com imparcialidade, porque, como
sabes, ela para mim não é uma mulher, mas uma alma. Não a vejo, não lhe toco, a
sua imagem material é-me tão indiferente como um pedaço de pau ou uma pedra.
Para mim, basta-me a sua representação, neste aroma, peculiar dela e que erra
sutilmente por toda a minha casa; nesta ordem, que me facilita a vida, e no gosto
com que ela embeleza tudo em que toca e em que pousa a vista. É uma educada.
Afigura-se-me que ela deve ter estudado à sombra de castanheiros ingleses, entre
campos de tulipas e jacintos, tão diversa ela me parece dever ser das outras
mulheres. Não me digas que é feia. Já sei que o é; mas deixa-me com esta fantasia,
que me sabe bem... Aí vem o Adolfo. São os passos dele. É bom que venha cortar
este idílio. Os idílios são como os sonhos: também às vezes vêm tarde!... Foi um
lindo sonho, o teu!
"Bom! Ele já tem consciência do perigo..." – pensou consigo Assunção.
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