Page 92 - 2M A INTRUSA
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– Parece-me prudente conversares hoje com D. Alice.
– Nunca... já agora, não quero!
– Tem paciência, meu velho, fala-lhe tu... és tão bom, tens-te interessado
tanto pela minha vida, que não sei já dar um passo sem ti... e quando o dou não sou
feliz. Estou a falar-te e a reparar numa coisa: vocês nunca aludem ao nome da
minha governanta sem o acompanharem do dona... vejo que ela inspira respeito a
toda a gente... deve efetivamente ser uma mulher fina e educada... D. Alice! Pois a
D. Alice vai sofrer vexames.
– Não sejas tolo.
– Verás.
– Espera-me hoje para o jantar. Conversarei depois com a... D. Alice. Ela é
cordata e conhece o seu lugar. Dás-lhe demasiada importância. Afinal, ela é uma
empregada... uma subalterna. Não exageres os melindres e tranqüiliza-te. Que mais
ordena, meu príncipe, ao seu mordomo?
– Que me abrace e me perdoe.
Assunção sentiu no abraço do amigo uma ternura intensa.
"Ama-a..." – pensou ele consigo, tristemente. "Ele ainda não o sabe... mas a
verdade é que ela já lá está dentro..."
Capítulo XV
Intolerável, o Feliciano, ao servir nessa tarde à mesa. Sem pronunciar uma
única palavra e mais empertigado ainda que de costume nuns colarinhos que lhe
roçavam as orelhas, percebia-se que no seu mutismo e seriedade ele sufocava de
contentamento. Quando o olhar de Argemiro o lobrigava espigado aos cantos,
esperando ordens, desviava-se com uma impressão esquisita e que não podia
definir. Durante todo o jantar, desgostou-o a figura limpa e correta do negro,
aproximando-se e afastando-se maciamente, conforme as exigências do serviço.
Em frente de Argemiro o padre Assunção, encostando os ombros quadrados
no alto espaldar da cadeira de couro, dilatava as narinas ao aroma das frescas rosas
que alegravam a mesa.
"Para tornar uma hora agradável basta às vezes bem pouca coisa..." –
pensava ele consigo. "Uma toalha bem limpa... umas flores orvalhadas... esmaltes
de louças reluzindo... e já os olhos e o olfato têm um repasto regalador... Amanhã,
as coisas estarão de outra maneira, que é vezo de inimigos contradizerem-se em
tudo. E então Argemiro confessará o que ainda pensa ignorar..."
– Acredita, meu velho, estás hoje com a fisionomia diferente! Salvaste com
certeza alguma alma do purgatório...
– Talvez... mas talvez sejam também efeitos de um sonho que tive esta
madrugada. Imagina: eu estava sentado a um órgão de uma catedral enorme, e de
tão peregrina beleza, que nenhuma haverá assim sobre a terra... Por toda a vastidão
do templo estendia-se uma luz pálida, de alvorecer ou de luar, desenhando nas
naves os rendilhados das rosáceas e as figuras dos vitrais... Eu tocava músicas
solenes e de tão concentrado, tão profundo sentimento, que as lágrimas me caíam
dos olhos aos pares, quando acordei, e tenho andado todo o dia com a alma cheia
de harmonias. Se eu fosse moço, teria corrido ao Instituto de Música a ver se
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