Page 89 - 2M A INTRUSA
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                  apreciar... Será ela na verdade a mulher perigosa, não pelo que calcula e inventa,
                  mas pelo que merece? Não será prudente encobrir, tanto quanto possível, essa
                  feição singular do seu caráter ao Argemiro?... Glória não repetirá ao pai as palavras
                  que me disse, fica-lhe no coração o sentido, mas a memória não as guardará com a
                  mesma fidelidade... Eu serei mudo... Convém ser mudo. Ele quer guardar a sua
                  independência... e nem percebe que já está cativo! Diz que não. É sincero quando o
                  diz... Entretanto, só se alegra quando entra em casa... já não olha com o mesmo
                  olhar saudoso para o retrato de Maria. Se a governanta sai, estando ele em casa,
                  logo se aborrece. É esquisito. Não a ouve... não a vê, mas  sente-a! Como acabará
                  tudo, se ela não for o que parece?... Há almas tão complicadas, tão indecifráveis! A
                  desta mulher assusta-me... preciso defender o Argemiro... sou o único amigo em
                  contato com ambos... Ela é difícil... eu, desajeitado. Se eu fosse mais corajoso e ela
                  mais franca... Mentirosa?... não me parece... mas é possível. Minha mãe gostou
                  dela. Mas o coração de minha mãe é propenso à simpatia. O melhor coração da
                  Terra!... Argemiro mudou... está iluminado... Ela envolve-o com um cuidado
                  excessivo... é isso que me faz cismar... Enfim, seja como for, a verdade é que a
                  minha Glória tem aproveitado. Cá embaixo parece outra. Deixa a casca selvagem
                  com a avó, e fica de cetim! Teremos isso de lucro! Porque, afinal, para tudo o mais o
                  remédio é a inércia".
                         Glória era esperada pelo avô no escritório do pai e, como o velho tivesse
                  pressa, as despedidas foram precipitadas. Só depois deles saírem Assunção
                  reparou na expressão aborrecida do amigo.

                         – Que novidades temos? Estás com uma cara!
                         – Imagina: minha sogra vem morar comigo!
                         – Felicito-te. Terás assim a tua filha sempre a teu lado. Parece-me que já lhe
                  pediste isso mesmo há tempos.
                         – Quando enviuvei. Então não quis. E agora...
                         – Quer. É natural.
                         – Mentes; não achas natural. Tu percebes tudo tão bem como eu.
                         – Direi mais: acho que faz bem.
                         – Em espionar-me?!
                         – Defender-te.
                         – Quem me ameaça?
                         – A tua imaginação.
                         – Vocês são todos uns imbecis!
                         – Talvez...
                         – Meteu-se-lhes uma asneira na cabeça e é ali! Eu sempre quero saber que
                  mal fez a pobre moça à minha sogra! E a vocês todos, que a guerreiam... mas
                  guerreiam por quê? Porque traz a minha casa alegre, cheirosa, bonita, limpa; porque
                  economiza o meu dinheiro, fazendo-me passar bem como nunca, e ainda corrige a
                  minha filha de feios vícios de educação! A eterna malícia faz disto um enredo e
                  mete-se-me no caminho para me perturbar. Tu sabes que eu quero muito à minha
                  sogra; depois da morte de Maria redobrou por ela o meu afeto e a minha
                  consideração... Sabes que tenho um grande prazer em vê-la, em estar a seu lado,
                  em chamar-lhe mamãe... como uma criança... como minha mulher fazia... Sabes que
                  sou fiel ao passado e ao juramento que fiz; sabes tudo isso e sabes também que
                  sou profundamente egoísta, que amo a ordem, o silêncio, o sossego, o conforto e a
                  liberdade! A liberdade, sobretudo! Aquela criatura que tenho em casa não é uma
                  mulher; é uma alma, que me não constrange absolutamente em nada. Levanto-me,

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