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                         – Os cegos nunca fizeram mal a ninguém...
                         – Não sei... mas eu tive medo de ficar com pena!


                         Alice chegava nesse momento; o padre cumprimentou-a e, recebendo a
                  menina, despediu-se dela.
                         Glória abraçou a moça com frenesi e partiu, em companhia do padre, para o
                  escritório do pai.
                         No bonde, recomeçou a conversa:

                         – Então hoje gostaste do passeio...
                         – Muito! Quando chegamos eu estava aborrecida; mas logo que passei pela
                  primeira sala fiquei interessada. D. Alice ia me mostrando todas as coisas com tanta
                  paciência... tudo muito limpo e as cegas tão risonhas! Havia lá uma menina
                  chamada Rosinha, da minha idade... e mais adiantada do que eu!
                         – Porque é estudiosa.
                         – Mas eu vejo!
                         – É que não basta ver...
                         – D. Alice levou uns biscoitos para as crianças... se o senhor visse a algazarra
                  que elas fizeram! São conhecidas de D. Alice... Uma tocou piano e um mocinho,
                  violino... Fiquei admirada... nunca imaginei que os cegos pudessem ser felizes.
                         – São, ali, porque não têm tempo de pensar na sua desgraça, tão ocupadas
                  têm todas as horas. Assististe às aulas?
                         – Assisti... leram... deram geografia...
                         – Foste às oficinas?
                         – Fui. Vi empalhar cadeiras, fazer escovas...
                         – Aí está: lendo, tocando, enramando vassouras ou fazendo outro qualquer
                  trabalho, eles estão sempre entretidos. É uma casa santa, aquela em que puseste
                  hoje os teus pés. Guarda na memória a lembrança desse passeio, que te servirá de
                  conforto quando ouvires mais tarde falar mal dos homens... Se não houvesse
                  bondade, ninguém iria ao encontro da miséria, nem protegeria os fracos...
                         – Foram as palavras de D. Alice, quando saímos de lá...
                         – Ah, ela disse isto mesmo?
                         – Tal e qual...
                         – É extraordinário!... que mais te disse?
                         – Que todos nós devemos conhecer as casas em que se pratica o bem na
                  nossa terra, para as bendizermos e conduzir até a sua porta os necessitados de seu
                  socorro... Disse que o Rio de Janeiro é uma cidade generosa e que nós todos
                  devemos fortificá-la no empenho de agasalhar os infelizes.
                         – Ela tem razão!
                         – Quando eu lhe disse que os cegos já não me pareciam desgraçados, ela
                  mostrou-me o mar... o céu... os morros... os barquinhos de vela... e perguntou-me
                  depois se eu não teria pena de não ver tudo aquilo.


                         "É o exemplo vivo, a comoção aproveitada para o exemplo moral..." – pensou
                  o padre. "Quem teria inoculado naquela mulher esta delicadeza, este tato de
                  educadora, tão raro? Ela conhece as plantas dos jardins e ensina os nomes das
                  nossas árvores; sabe de cor as casas de caridade e chama para elas a simpatia das
                  crianças, interessando-as ao mesmo tempo pela grande família dos infelizes...
                  Sujeita-se a exercer um lugar suspeito, aceitando todas as condições que lhe
                  impõem e revela uma sensibilidade rara em todos os atos em que a podemos

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