Page 88 - 2M A INTRUSA
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– Os cegos nunca fizeram mal a ninguém...
– Não sei... mas eu tive medo de ficar com pena!
Alice chegava nesse momento; o padre cumprimentou-a e, recebendo a
menina, despediu-se dela.
Glória abraçou a moça com frenesi e partiu, em companhia do padre, para o
escritório do pai.
No bonde, recomeçou a conversa:
– Então hoje gostaste do passeio...
– Muito! Quando chegamos eu estava aborrecida; mas logo que passei pela
primeira sala fiquei interessada. D. Alice ia me mostrando todas as coisas com tanta
paciência... tudo muito limpo e as cegas tão risonhas! Havia lá uma menina
chamada Rosinha, da minha idade... e mais adiantada do que eu!
– Porque é estudiosa.
– Mas eu vejo!
– É que não basta ver...
– D. Alice levou uns biscoitos para as crianças... se o senhor visse a algazarra
que elas fizeram! São conhecidas de D. Alice... Uma tocou piano e um mocinho,
violino... Fiquei admirada... nunca imaginei que os cegos pudessem ser felizes.
– São, ali, porque não têm tempo de pensar na sua desgraça, tão ocupadas
têm todas as horas. Assististe às aulas?
– Assisti... leram... deram geografia...
– Foste às oficinas?
– Fui. Vi empalhar cadeiras, fazer escovas...
– Aí está: lendo, tocando, enramando vassouras ou fazendo outro qualquer
trabalho, eles estão sempre entretidos. É uma casa santa, aquela em que puseste
hoje os teus pés. Guarda na memória a lembrança desse passeio, que te servirá de
conforto quando ouvires mais tarde falar mal dos homens... Se não houvesse
bondade, ninguém iria ao encontro da miséria, nem protegeria os fracos...
– Foram as palavras de D. Alice, quando saímos de lá...
– Ah, ela disse isto mesmo?
– Tal e qual...
– É extraordinário!... que mais te disse?
– Que todos nós devemos conhecer as casas em que se pratica o bem na
nossa terra, para as bendizermos e conduzir até a sua porta os necessitados de seu
socorro... Disse que o Rio de Janeiro é uma cidade generosa e que nós todos
devemos fortificá-la no empenho de agasalhar os infelizes.
– Ela tem razão!
– Quando eu lhe disse que os cegos já não me pareciam desgraçados, ela
mostrou-me o mar... o céu... os morros... os barquinhos de vela... e perguntou-me
depois se eu não teria pena de não ver tudo aquilo.
"É o exemplo vivo, a comoção aproveitada para o exemplo moral..." – pensou
o padre. "Quem teria inoculado naquela mulher esta delicadeza, este tato de
educadora, tão raro? Ela conhece as plantas dos jardins e ensina os nomes das
nossas árvores; sabe de cor as casas de caridade e chama para elas a simpatia das
crianças, interessando-as ao mesmo tempo pela grande família dos infelizes...
Sujeita-se a exercer um lugar suspeito, aceitando todas as condições que lhe
impõem e revela uma sensibilidade rara em todos os atos em que a podemos
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