Page 87 - 2M A INTRUSA
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Arguía em mente a sua fraqueza e indolência.
Via irem as coisas por água abaixo e não fazia nem sequer um aceno para
prendê-las! Não era tempo de tomar uma resolução?
A culpabilidade dos outros atemorizava-a?
O dever das mães não é defender os filhos até a morte?
A sua passividade não era, portanto, um crime, e não seria tempo de pôr em
ação o seu desejo, até agora sufocado pelas mãos dos outros, de reaver para a sua
Maria o coração de Argemiro e guardá-la lá dentro, como santa única em devoto
oratório?!
À força de pensar nisso, materializava as imagens, dava corpo e sangue às
suas idéias, pronta a bater-se por elas até o último alento.
Recriminava-se agora da sua altivez, mandando calar-se o negro quando este
lhe ia relatar o resultado da sua espionagem... Que tola generosidade fora a sua, e
de que desencontrados sentimentos são vítimas as criaturas humanas... Repelira
também o alvitre da cartomante, cansada de esperar pela carta anunciada...
Vinham-lhe agora tentações de voltar lá, a ver se ao menos encontrava alguém a
seu favor! Que falta fazia um braço em que se apoiar!... Certamente que a
cartomante não lhe devia merecer absoluta fé... mas não acertara ela em muitos
pontos com a verdade? A inimiga e as suas maquinações não lhe tinham saltado
aos olhos logo no princípio da consulta?
Dever-lhe-ia negar o poder da adivinhação? E em vez de negar, não seria
prudente recomeçar?
Uma elucidação...
O aventalzinho escarlate caíra para o soalho, e nos resedás da janela um
beija-flor destemido batia as asas delirantemente.
Eram três horas da tarde quando a baronesa, muito afogueada, subiu a
escadinha íngreme da D. Alexandrina. Como na primeira vez, teve de esperá-la
longamente na sala de jantar, entre cromos pregados a goma na parede e aniagens
sujas de cortinas. Um cãozinho rateiro rosnava a um canto, de focinho desconfiado
erguido para as sedas pretas da velha bem tratada. Depois de uns minutos que se
afiguraram longuíssimos à consultante, a portinha do quarto abriu-se e D.
Alexandrina apareceu, com o queixinho sumido em um riso largo de boas-vindas.
A baronesa disse, em tom queixoso:
– Não recebi a tal carta anunciada pela senhora...
– Há de recebê-la... as cartas não mentem! Ainda não é tarde... Entre...
Nessa segunda-feira o passeio fora ao Instituto dos Cegos.
Glória voltava com a alma cheia de espanto. Divisando no banco do jardim o
padre Assunção, pontual na espera, correu para ele com entusiasmo. Alice
acompanhava-a a distância, com um sorriso plácido.
– Adivinhe onde eu fui, padre Assunção!
– A algum lugar muito bonito, porque os teus olhos refletem maravilhas!
– Acertou. Fui ao Instituto dos Cegos!...
– Ah! mas... pareceste-me tão alegre!
– Pois então! eu imaginava que todos os ceguinhos vivessem amargurados...
zangados... que no escuro em que vivem não se entretivessem com coisa nenhuma,
nem pudessem ler, nem tocar, nem nada... Quando D. Alice me disse: vamos ao
Instituto dos Cegos... eu não respondi nada, por vergonha, mas fiquei com medo...
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