Page 44 - 2M A INTRUSA
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– Que cadeira? homem, é verdade... hás de crer? Ainda não tinha reparado...
agora me lembro, ela tinha o estofo do espaldar esgarçado... Este lírio seria pintado
por D. Alice?
– Se te não pôs na conta do estofador...
– Posso verificar já. Ontem à noite recebi uma caderneta com a nota das
despesas do mês e... pasma, saldo a meu favor! Eu não dizia que o Feliciano era um
abismo? Que diferença! basta olhar. Tu, que és mais observador, repara: está tudo
luminoso, tudo límpido, tudo bem arranjadinho... hein? Há outra atmosfera nesta
casa; estou melhor aqui do que em parte nenhuma, porque em tudo me parece
haver o propósito de me ser agradável. Abre essa gaveta, e verás como está bem
arranjadinha a minha roupa branca. Um primor! E o que me delicia é sentir a alma
desta criatura, que aqui tenho debaixo do meu teto, sem que nunca os meus olhos a
vejam nem de relance... Ela esconde-se, ao mesmo tempo que se espalha pela casa
toda. É a mulher-violeta, positivamente, não há outra comparação! Esta será
estafada em literatura, mas na vida prática talvez nunca tivesse tão boa aplicação...
A Glória, que é tão rebelde, já aprendeu com ela alguma coisa... Faz crochê! É uma
coisa abominável, o crochê; mas, enfim, é uma prenda... Eu deveria ter tomado esta
resolução há mais tempo...
– Talvez não tivesse vindo esta mulher... Outra seria assim?
– Não! Ontem, por exemplo, entrei em casa uma hora antes do costume;
atravessava o jardim, quando senti acordes no piano; mas acordes bem harmônicos,
vibrados por dedos disciplinados, conscientes. Ouvindo-me tocar a campainha, ela
fugiu da sala; e quando eu entrei, um pouco curioso, confesso-te, encontrei o piano
aberto, mas a sala deserta... Logo, esta mulher é uma mulher educada,; desenha, aí
está esse lírio, que o prova; sabe música e escreve com firme caligrafia. Glória tem
aqui uma excelente companheira e a minha casa uma alma inteligente, que lhe
faltava desde a morte de Maria, que aliás não era tão prendada... Enfim, enquanto
eu me visto, examina essa caderneta, acolá, naquela mesa...
– Para quê, meu velho? Só a ti compete isso. Eu não entendo de cifras.
Mesmo de almas, apesar de me ter dedicado a elas, cada vez entendo menos...
Estou um ignorantão.
– Almoças comigo? almoças, sim, e vais ver o que é uma mesa bem posta;
sempre com flores e com frutas. Esta mulher deve ter sido criada com luxo. Noto que
ela gosta de rendas... Enfim, estou contente!
– Lamento.
– Hein?
– Lamento.
– Estás doido!
– Não.
– Explica-te. Ah! já sei! pensas talvez que estou apaixonado?! Quem me dera,
Assunção, que assim fosse! Não sei que filtro misterioso tinha a minha pobre Maria,
que não me deixa amar mais ninguém!... Se eu fosse espírita explicaria isso bem,
dizendo-te que a sinto à roda de mim, e que ela se interpõe mesmo entre os meus
mais frívolos beijos! Mas sabes que não sou espírita, nem religioso. O que me apraz,
nesta situação, é sentir em roda de mim a influência de uma mulher moça, sem
contudo a ver nunca. Gosto do silêncio e da ordem e a sua presença me perturbaria;
assim, ela preside à minha casa, sendo para mim como um ser imaterial, que não
me impõe a maçada dos cumprimentos, e eu vivo rodeado de solicitudes, podendo
conservar a minha impassibilidade. Não acredites que me seja possível amar outra
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